quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Todos sabem como ele foi crucificado

Todos sabem como ele foi crucificado, juntamente com dois outros, e quais as pessoas que se encontravam à sua volta. Eram Maria, sua mãe, Maria Madalena e Verónica, Simão de Cireneu, que o tinha ajudado a carregar a cruz, e José de Arimateia, que o deveria amortalhar. Um pouco afastado dos outros, porém, mais abaixo na encosta, um homem observava constantemente aquele que estava pregado na cruz, lá no alto, acompanhando a sua agonia do início até ao fim. Chamava-se Barrabás.

Era um homem robusto de cerca de trinta anos de idade, tez amarela palida, barba avermelhada e cabelos pretos. Também as suas sobrancelhas eram pretas, e os olhos, muito fundos, pareciam esconder-se nas orbitas. Uma profunda cicatriz, começando em baixo do olho, desaparecia-lhe pela barba adentro. Mas, o aspecto de um homem bem pouco significa.

Tinha seguido a multidão pelas ruas, desde o pretório, mas guardando distância, um pouco atrás dos outros, e quando, exausto, o rabi prostou-se sob o peso da cruz, detivera-se um momento para não se aproximar do local onde jazia o madeiro. Tinham então forçado Simão Cireneu a tomar o lugar do condenado e carregá-la. Quase não havia homens na multidão a não ser, naturalmente, os soldados romanos; os que seguiam o condenado à morte eram, na sua maioria, mulheres. Havia ainda um bando de rapazotes que sempre corria atrás quando passava alguém que ia ser crucificado, pois viam naquilo um espectaculo divertido. Cansaram-se rápidamente, porém, e voltaram aos seus brinquedos e brincadeiras de infância, após terem lançado um olhar ao homem com a grande cicatriz na face, que caminhava atrás dos outros.

De pé no lugar do suplício, contemplava agora aquele que estava pregado na cruz, no centro, sem poder tirar os olhos de lá. Não tivera a intenção de subir até ali, onde tudo era impuro e infecto, pois, quando se colocavam os pés naquela área de terra maldita, deixava-se nela qualquer coisa de si mesmo: podia-se voltar, forçado por um impulso maléfico, para nunca mais sair dali. Cranios e ossadas jaziam espalhados pelo chão, ao lado de cruzes tombadas, meio apodrecidas, não prestando para mais nada. Ninguém tocava neles. Porque permanecia ele ali? Não conhecia o crucificado e nada tinha que ver com ele. Que fazia no Golgota, se tinha sido libertado?

A cabeça do crucificado pendia para a frente e ele respirava com dificuldade; não lhe restava, certamente, muito tempo de vida. Não era um homem robusto. Seu corpo era magro e fraco, e os seus braços finos pareciam nunca ter servido para alguma coisa. Homem estranho, aquele... A sua barba era rala; o peito, sem pêlos, era como o de um adolescente. O homem que o observava não gostou do seu aspecto.

Mas, desde que o vira pela primeira vez, no pátio do pretório, sentia haver algo de extraordinário nele. Não sabia bem o que era, apenas o sentia. Parecia-lhe nunca ter visto antes um homem assim. Devia ser porque como acabava de sair do cárcere, os seus olhos ainda não estavam acostumados à claridade, mas vira-o, no primeiro momento, rodeado de uma brilhante auréola de luz. Pouco depois, porém, o brilho desapareceu; os seus olhos voltavam ao normal, viam agora tudo nitidamente, não apenas o homem solitário no pátio do palácio. No entanto, persistia a impressão de que havia algo muito estranho naquele homem, de que ele era diferente de todos os outros homens. Não conseguia ver nele, absolutamente, um prisioneiro, como ele o fora. Não podia compreender. Não que fosse da sua conta, mas... como podiam condenar assim? O homem era inocente, quanto a isso não havia dúvida.

Tinham-no levado para crucificá-lo, enquanto a ele, Barrabás, tiraram os ferros e declararam-no livre. Não dependia de sua vontade, isso era lá com eles... Podiam escolher quem muito bem entendessem, era direito deles, e, a sorte, decidira. Ambos estavam condenados à morte e um tinha que ser absolvido. Ele, inclusive, tinha sido o primeiro a admirar-se da escolha. Enquanto o libertavam das correntes, tinha visto o outro, já com a cruz nos ombros, desaparecer entre os soldados.

Ficara a olhar para o caminho agora vazio e um soldado deu-lhe um empurrão, gritando:
- Porque é que ainda estás aí? És livre, sai daqui para fora!

Ele então despertou, e ao ver o outro a arrastar a cruz pela rua, segui-o. Porquê? Ignorava-o. Nem sabia porque é que ficara horas a observar a crucificação e a longa agonia do condenado, pois nada tinha que ver com tudo aquilo.

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