quinta-feira, 11 de dezembro de 2008


Ele sentiu-se comovido ao ouvir estas palavras. Contra a sua vontade sentiu alguma coisa, mas não conseguia definir o que era. Ficou parado algum tempo, indeciso, sem saber o que dizer nem o que fazer. Depois aproximou-se do sepulcro, como tencionara, e certificou-se que estava vazio. Mas isso, afinal, já sabia de antemão, e, além do mais, era-lhe indiferente. Que lhe importava que estivesse vazio ou não? Voltou em seguida para junto da mulher, que estava no mesmo lugar. O seu rosto estava tão transfigurado e irradiava tal bem-aventurança, que ele experimentou um sentimento de sincera pena. Na realidade, o que a tornava assim feliz não era verdade, não existia. Poderia ter-lhe explicado o que havia exactamente naquela ressureição, mas... não a tinha magoado já o suficiente? Não conseguiu decidir-se a dizer-lhe a verdade. Perguntou-lhe cautelosamente como ela achava que as coisas se tinham passado, de que maneira o morto havia ressuscitado.
Ela encarou-o espantada. Então ele não sabia? Em seguida, radiante, pôs-se a contar detalhadamente, com a sua voz anasalada, como um anjo se precipitara dos céus, o braço estendido que nem ponta de lança e o manto ondulando tal qual enorme chama. A ponta da lança e o manto ondulado penetrara entre a laje e a rocha, separando-as. Parecia a coisa mais simples do mundo, e de facto era-o, embora fosse um milagre. Eis o que se passara. Ele não tinha visto?
Barrabás baixou os olhos e repondeu que não. No íntimo, estava muito satisfeito por nada ter visto. Era prova de que os seus olhos agora estavam normais como os de toda a gente, que ele já não sofria mais alucinações, vendo apenas aquilo que realmente existia. Aquele homem não exercia mais poder sobre ele. Não vira a ressureição nem nada. A mulher, no entanto, continuava ali, com os olhos brilhantes, rememorando o que presenciara. Finalmente ela pôs-se de pé para se ir embora e andaram juntos um pedaço do caminho, em direcção à cidade. Não trocaram muitas palavras, mas ele soube que, desde o último encontro, ela começara a acreditar naquele a quem chamavam o Filho de Deus, e a quem ele, por sua vez, chamava o morto. Quando, porém, lhe perguntou o que ensinava ele afinal, ela não quis responder; virou o rosto, evitando que os seus olhos se encontrassem com os dele. Chegaram a um ponto em que o caminho se dividia; a mulher ia tomar a direcção do vale do Guében-Hinnom, ao passo que ele pretendia continuar directamente até à porta de David. Antes de se separarem, tornou de novo a perguntar-lhe qual era a doutrina que aquele homem pregava, na qual ela acreditava, embora aquilo não fosse da sua conta. Ela deteve-se, olhou para o chão, e depois atirou um olhar esquivo a Barrabás. Disse gaguejando:
- "Amai-vos uns aos outros".
Em seguida cada um foi para o seu lado.
Mas Barrabás parou e seguiu-a com os olhos, durante longo tempo.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Barrabás saiu do seu esconderijo e foi examinar mais detalhadamente a sepultura. Ao passar pelo vulto cinzento, ajoelhado no meio do caminho, viu, surpreendido, que era a mulher de lábio leporino. Parou para observá-la. O rosto pálido e escaveirado da mulher estava direccionado para a sepultura vazia e o seu olhar extasiado não via outra coisa. Tinha a boca entreaberta e mal respirava; a ferida que lhe deformava o lábio superior estava branca. Ela nem deu conta da presença de Barrabás.
Ao vê-la assim, a sensação quase de impudor apoderou-se dele, causando-lhe uma estranha sensação. Recordou-se então de algo que não queria lembrar. Lembrou-se de outra ocasião em que viu o rosto daquela mulher assim, como hoje. Então também sentiu vergonha... Deu de ombros e afastou de si essa imagem do passado.
Finalmente ela viu-o. Também se admirou muito de o encontrar por ali. Não era de estranhar, pois ele mesmo estava admirado de se encontrar naquele lugar. O que tinha ele a ver com tudo aquilo?
Barrabás teria preferido simular que vinha simplesmente andando pelo caminho e que só por acaso passava por ali, sem saber que lugar era aquele nem que havia qualquer supultura por ali. Saberia ele fingir? Talvez não o conseguisse, talvez ela não acreditasse. Em todo o caso foi ao seu encontro e perguntou:
- O que fazes aí de joelhos?
A mulher não ergueu os olhos nem tão pouco se moveu. Continuou com antes, os olhos postos no sepulcro aberto na rocha. Numa voz quase inaudível, murmurou:
- O filho de Deus ressuscitou...

sábado, 22 de novembro de 2008

Ele sabia que o morto não ia sair da sepultura


Estava acocorado atrás de um arbusto de tamargas do outro lado da estrada, exactamente em frente à sepultura. Logo que o dia clareasse ele ia vê-la muito bem. Do lugar onde se encontrava ia vê-la perfeitamente. Assim o sol viesse!
Naturalmente sabia que o morto não ia sair da sepultura, mas mesmo assim queria certificar-se com os seus próprios olhos para afastar toda e qualquer sombra de dúvida. Levantara-se, por isso, muito cedo, antes do nascer do sol, e viera colocar-se à espreita, atrás do arbusto. Admirava-se do seu próprio gesto, ver-se ali, à espera de um milagre. Porque é que, afinal de contas, se interessava tanto pelo caso? O que tinha ele que ver com aquilo tudo?
Esperava que mais gente viesse ao lugar presenciar o grande milagre, e escondera-se, pois não queria ser visto. Mas era evidente que ali não havia ninguém a não ser ele mesmo. Coisa bem estranha...
Nisso, porém, avistou a certa distância, provávelmente no meio do caminho, um vulto ajoelhado. Quem seria e por onde teria vindo? Não tinha ouvido ninguém a aproximar-se. Parecia uma mulher. A vaga silhueta cinzenta mal se destacava na poeira da mesma cor.
O dia estava a clarear e não tardou que os primeiros raios de sol caíssem sobre a rocha na qual estava cavada a sepultura. Tudo se passou tão rápido que Barrabás nada pode ver, justamente nos momentos mais importantes. O sepulcro vazio! A laje tinha sido derrubada para um lado, e a cavidade aberta na parede da rocha estava igualmente vazia!
No primeiro momento, foi tal o seu espanto que ficou estatelado, olhando para a abertura na qual ele mesmo tinha visto depositarem o corpo do crucificado, e para a grande laje com que, sob as suas vistas, a tinham tornado a fechar. Mas depois compreendeu tudo. Nada de extraordinário tinha acontecido. A pedra estivera virada sempre; quando ele chegou ali já estava assim, e a sepultura estava também vazia. Não era difícil adivinhar quem havia derrubado a laje e carregado o cadáver. Os discípulos, naturalmente, durante a noite... Protegidos pela escuridão, tinham levado o querido e adorado mestre, a fim de poderem dizer mais tarde que ele ressuscitara, exactamente como predissera. Não eram precisos grandes cálculos para se chegar a essa conclusão.
Por isso é que eles não apareciam agora de manhã quando, ao alvorecer, o milagre devia ter acontecido!

sábado, 15 de novembro de 2008


Recordou-se, depois, da casa entre os dois cedros... De pé, na soleira da porta, a mãe seguia-a com os olhos, enquanto ela descia a encosta, carregando o peso da maldição... Sim, era natural que os seus pais a escorraçassem de casa e que ela deveria viver, dali em diante, como os animais nas suas tocas...Lembrou-se dos campos, muito verdes na primavera, e da mãe que ficara, vendo-a partir, meio oculta na sombria abertura da porta para não ser vista por aquela que amaldiçoava...
Mas agora tudo aquilo já não tinha mais significado.
O cego ergueu-se e pôs o ouvido à escuta. Acordara e ouvia as sinetas do leproso.
- Fora daqui! - gritou ele, ameaçando-o na escuridão, com o punho fechado. - Some-te! Que vens aqui fazer?
O som das sinetas foi desaparecendo aos poucos, na noite, e o velho tornou a deitar-se, resmugando, a mão sobre os olhos vazios.
As crianças mortas também estariam no reino das sombras? Era provável que sim, a não ser, naturalmente, as que morriam no seio materno. Afinal, não se podia torturá-las; fazê-las sofrer não era possível.
Tremeu como se sentisse frio. Como ela ansiava pelo nascer do dia. Ainda tardaria muito a madrugada? Parecia-lhe ser muito tempo aquele em que esteve deitada e a noite não tinha fim. Mas, as estrelas, lá no alto, já não eram as mesmas, e a lua, em foice, desde há muito que tinha desaparecido atrás da montanha. Já se verificara a terceira rendição da sentinela, pois ela tinha visto, pela terceira vez, a luz dos archotes sobre o muro da cidade. A noite certamente findaria. A última noite...
A estrela da alva surgiu sobre o monte das oliveiras. Ela reconheceu-a logo: era uma estrela grande e brilhante, muito maior que todas as outras. Nunca a vira tão luminosa. Cruzou as mãos sobre o peito cavo e continuou por algum tempo deitada, fitando o astro com os olhos ardentes.
Depois, levantou-se precipidamente e partiu, desaparecendo na escuridão.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O encontro com ele...


Pensou então no dia em que se tinha encontrado com o filho de Deus, e na bondade que ele lhe havia demonstrado. Jamais alguém tinha sido tão bondoso para ela. Podia muito bem ter-lhe suplicado que a curasse da sua deformidade, mas não o fez, de propósito. Teria sido fácil para ele, porém ela não o quis pedir. Ele ajudava os que realmente necessitavam de ajuda, realizava obras maravilhosas. Não o quis importunar por tão pouco.
Não era estranho, muito estranho, o que ele dissera ao se aproximar dela, vendo-a ajoelhada na poeira do caminho?
- Também imploras milagres de mim? - perguntara ele.
- Não, senhor. Contento-me em te ver passar.
Então, olhando-a, muito meigo e ao mesmo tempo triste, ele afagara-a no rosto e tocara-lhe com a boca, sem que alguma modificação se operasse. Depois disse:
- Tu darás testemunho de mim.
Que palavras extraordinárias! O que quereria ele dizer? Darás testemunho de mim? Ela? Era incompreensível. Como o poderia fazer?
Ele não tivera dificuldade em entender o que ela dizia; como a todos os outros, entendera-a imediatamente. Mas nada havia de surpreendente nisso, pois era filho de Deus.
Ali deitada, ela pensava tanta coisa... Na expressão do Mestre quando ele lhe dirigira a palavra, no odor das suas mãos quando lhe tocara os lábios.
As estrelas reflectiam-se nos seus grandes olhos, muito abertos, e ela viu, admirada, que se tornavam mais numerosas quanto mais as contemplava. Desde que deixara de morar sob um telhado, tinha visto tantas estrelas... O que eram afinal? Não o sabia. Tinham sido criadas por Deus, naturalmente, mas o que eram? No deserto havia muitas estrelas... E também nas montanhas. Nas montanhas de Gilgal... Mas não na noite em que... Não, naquela noite não.

domingo, 9 de novembro de 2008

O reino da morte...


A mulher de lábio leporino não conseguia dormir. Com o solhos erguidos para as estrelas, pensava no que iria acontecer. Não queria adormecer, estava disposta a velar a noite inteira.
Deitada num monte feito de ramos e palha numa vala fora da Porta do Monturo, ouvia à sua volta os enfermos gemendo e agitando-se no sono e o tilintar da sineta do leproso, que a dor forçava às vezes a levantar-se. O mau cheiro dos enormes amontoados de lixo preenchia todo o vale e dificultava a respiração. Ela, porém, estava tão acostumada que já não o sentia. Aliás, todos os que ali viviam não sentiam o cheiro.
Amanhã ao nascer do sol... Amanhã ao nascer do sol...
Que pensamento maravilhoso: dentro em breve os doentes seriam curados e os famintos receberiam alimentos. Mal se podia imaginá-lo. Como seria? O céu abrir-se-ia e os anjos desceriam para alimentar toda a gente, pelo menos todos os pobres? Os ricos, provávelmente, continuariam a comer nas suas próprias casas, mas todos os pobres, todos os que sofriam realmente com a fome, seriam alimentados pelos anjos... Aqui, junto à Porta do Monturo, tolhas seriam estendidas pelo campo, brancas toalhas de linho, cobertas com as mais variadas iguarias e todos se estenderiam no solo para comer. Nem era tão difícil imaginá-lo; bastava pensar que tudo seria completamente diferente do que era agora. Tudo mudaria, nada seria como se estava habituado a ver todos os dias.
Talvez ela mesmo tivesse outras vestes, quem sabe? Brancas, talvez. Ou uma túnica azul? Tudo se iria transformar, pois o filho de Deus já teria ressurgido e a alvorada de uma nova era estaria a raiar.
Amanhã... Amanhã ao nascer do sol. Era tão bom sabê-lo...
Ouvia, já mais perto, o conhecido tilintar das sinetas do leproso, que tinha o hábito de subir até ali à noite; as pessoas atingidas por esse mal viviam confinadas no fundo do vale, e não tinham o direito de transpor a sua barreira; mas na escuridão, ele atrevia-se a fazê-lo. Era como se o infeliz procurasse a proximidade dos seres humanos. Aliás, ele mesmo uma ocasião lhe disse isso mesmo. Ela viu-o avançando cautelosamente entre as pessoas adormecidas, sob a luz das estrelas.
O reino da morte... como seria, afinal? Diziam que o Mestre percorria o reino dos mortos... Qual seria o aspecto desse lugar? Não, isso ela não conseguia imaginar...

sábado, 1 de novembro de 2008

Foi em sua vez que Ele foi crucificado...


- Nem que a terra tremeu e a colina do Golgotá se abriu exactamente no local onde estava erguida a cruz?
- Isso não é verdade! É pura invenção. Como sabes que a colina se fendeu? Estiveste lá para ver?
Uma completa mudança operou-se súbitamente no outro. Olhou para Barrabás, meio titubeante e depois baixou os olhos.
- Não, não... Eu nada sei ao certo. Não o presenciei, nem o posso atestar - balbuciou ele.
Ficou algum tempo mudo e triste, suspirando dolorosamente. Afinal, pousando a mão no braço de Barrabás, continuou:
- Vês... Eu não estava com o meu Mestre quando ele sofria e agonizava. Eu tinha fugido. Abandonei-o e fugi. E antes já o tinha negado. E aí está o pior de tudo... renegá-lo! Como poderá ele perdoar-me? Que direi eu, que responderei, se ele me questionar?
Ocultou com as mãos o rosto cheio e barbado, num gesto de desespero.
- Como pude fazer semelhante coisa? Como é possível que possa ter cometido tal erro?...
Os seus límpidos olhos azuis estavam húmidos quando ele, afinal, ergueu a cabeça e fitou Barrabás:
- Perguntaste-me o que me afligia. Agora sabe-lo. Agora sabes como eu me sinto. E o meu Senhor e Mestre sabe-lo ainda melhor. Sou apenas uma pobre e miserável criatura humana... Achas que ele me perdoará?
Barrabás disse acreditar que sim. Na realidade, o que ouvia não bastava para despertar nele grande interesse, mas em todo o caso disse que sim, para mostrar simpatia e porque sentia pena daquele homem que se acusava a si mesmo de criminoso, embora não tivesse feito nada de mal. Pois haveria alguém no mundo que nunca tivesse traído, de um modo ou de outro?
O homem tomou-lhe a mão, apertando-a fortemente.
- Achas que sim? Achas que sim? - repetiu consternado.
Nesse momento, alguns homens passaram na rua. Quando viram o homem ruivo e o homem com quem falava, cuja mão retinha na sua, estremeceram e pararam, não querendo acreditar no que viam. Aproximaram-se depressa e, abordando com profundo respeito o homem mal vestido, gritaram alvoroçadamente:
- Não sabes quem é este indivíduo?
- Não - respondeu ele, o que era verdade. - Não sei. Mas é um homem compassivo e entendemo-nos muito bem.
- Não sabes então que foi em seu lugar que o Mestre foi crucificado?
O homem largou a mão de Barrabás e olhou de um lado para o outro, sem poder ocultar a sua perturbação. Os recém-chegados revelaram ainda mais claramente o que pensavam e sentiam, e ouvia-se-lhes a respiração ofegante, que denotava indignação.
Barrabás tinha-se erguido e virara-lhes as costas, para que ninguém lhe visse o rosto.
- Fora daqui, maldito! - gritaram os homens com violência.
Ele envolveu-se no seu manto e afastou-se, só, pela rua fora, sem se voltar uma única vez.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Não são coisas fáceis de compreender!


- E porque é que se deixou crucificar, se tinha tanto poder?
- Sim, sim... Já sei.... Não são coisas fáceis de compreender. Sou um homem simples, sabes? não me é nada fácil compreender tudo isso, podes crer.
- Não estás certo de que ele vai ressuscitar?
- Estou, sim, claro que estou. O que eles dizem é verdade, estou convencido disso. O mestre voltará para se revelar em toda a sua glória e esplendor. Estou absolutamente certo disso e eles, que o afirmam, conhecem as escrituras melhor do que eu. Será um grande dia. Dizem que vai começar então uma nova era, a era da bem aventurança, em que o filho do homem regenerá o seu reino.
- O filho do homem?
- Sim. É como ele se chamava a si mesmo.
- O filho do homem?
- Era assim que ele dizia. Mas há quem acredite... não, não posso dizer...
Barrabás aproximou-se mais.
- Em que acreditam eles?
- Acreditam... que ele é filho do próprio Deus.
- O filho de Deus?
- É... mas pode não ser verdade. Quase nos causa inquietação. Eu gostaria mais de o ver voltar de novo, como ele era antes.
Barrabás não podia conter a sua agitação.
- Como podem eles dizer semelhante absurdo? - gritou exaltado. - O filho de Deus! O filho de Deus crucificado! Devias entender que tal coisa é impossível!
- Eu já disse que pode não ser verdade. Tornarei a dizê-lo, se assim o quiseres....
- Que loucos acreditam nisso? - continuou Barrabás. A cicatriz sobre o olho tornou-se mais vermelha, como sempre acontecia nas ocasiões em que se exaltava. - O filho de Deus desceria à Terra? E começaria por percorrer a sua região natal e pregar?
- Porque não? Seria bem possível. Podia começar lá como em qualquer outro lugar. É uma cidade pobre e pequena, bem sei. Mas em algum lugar era preciso começar.
O homem era tão ingénuo que Barrabás teve vontade de rir. Mas a sua agitação impedia-o. Durante todo o tempo compunha o seu manto de pelo de cabra, como se este estivesse sempre a cair-lhe dos ombros, o que não era o caso.
- E os prodígios que marcaram a sua morte? - disse o outro. - Já pensaste neles?
- Que prodígios?
- Tudo escureceu no momento da sua morte. Não o sabias?
Barrabás virou o rosto e passou as mãos nos olhos.

sábado, 18 de outubro de 2008

Ressuscitar...





- Agora que ele morreu, compreende-se muito melhor aquilo que ele costumava dizer - murmurou o outro, como se falasse consigo mesmo.
- Tu conhecia-lo bem? - perguntou Barrabás.
- Claro. Conhecia-o muito bem. Estive com ele, lá em cima, desde o início, quando estava entre nós.
- Ah, bem. Ele era lá da tua terra.
- E depois segui-o sempre, por toda a parte, para onde quer que ele fosse.
- Porquê?
- Porquê? Bem, isso agora... Por aí se está a ver que não o conheceste...
- Que queres dizer com isso?
- Ele tinha... ele tinha um poder sobre as pessoas, compreendes? Um estranho poder, um domínio... Dizia simplesmente: "Segui-me!" e tinha-se de seguí-lo. Não se podia fazer outra coisa. Se o tivesses conhecido, compreenderias melhor... Também o terias seguido.
Barrabás calou-se. Mas após um momento de silêncio:
- Sim, deve ter sido um homem extraordinário, se aquilo que dizes é verdade. No entanto, o facto de ter sido crucificado não prova que a sua força, ou o seu poder, não era, afinal, tão grande assim?
- Não... não é isso. A princípio eu também pensei assim, e é justamente o que aflige - ter acreditado em semelhante coisa, ainda que fosse só por um momento. Mas agora creio que compreendi o sentido da sua morte ignominiosa, agora que reflecti um pouco e falei com os outros, mais versados nas escrituras. Vês, por nossa causa ele, inocentemente, teve de sofrer tudo o que sofreu, até mesmo ter que descer ao reino das sombras. Mas ele voltará para dar provas do seu infinito poder. Ele ressuscitirá de entre os mortos. Estamos absolutamente certos disso.
- Ressuscitar? Ressurgir depois de morto? Que coisa mais estúpida...
- Não é uma coisa estúpida, ele irá faze-lo. E muitos acreditam que será amanhã bem cedo. Amanhã será o terceiro dia. Ele declarou, parece, que ficaria três dias no reino dos mortos. Eu nunca o ouvi dizê-lo, mas consta que assim o predisse. E amanhã, ao nascer do sol...
Barrabás encolheu os ombros.
- Não acreditas? - perguntou o outro.
- Não.
- Não, não. Nem podes acreditar... Nunca o conheces-te. Mas muitos de nós acreditam. E porque não se ele ressuscitou tantos mortos?
- Ressuscitou mortos? Não é possivel!
- É sim. Eu vi com os meus próprios olhos.
- É verdade? Tu vis-te com os teus olhos?
- Claro que é. A pura verdade. O seu poder é ilimitado. Pode fazer tudo, é só ele querer. Ah, seria bom se quisesse usar esse poder em benefício próprio! Mas nunca o fez.

domingo, 12 de outubro de 2008

Vinha de longe, muito longe...

Ah, vinha de longe, de muito longe. Os seus olhos infantis tentaram expressar o quanto era distante o lugar de inde vinha. Confiou abertamente a Barrabás o quanto desejava estar na sua casa, na sua terra natal, preferida por ele a Jerusalém ou a qualquer outro lugar do mundo. Mas não podia jamais voltar, não podia morrer e viver na sua terra, como queria, como tinha imaginado outrora. Barrabás estranhou. Porquê? Quem o impediria, se cada um tem o direito de fazer de si o que quiser?
- Oh, não!... - respondeu pensativo. - Não é assim.
Barrabás não pode deixar de perguntar porque é que ele estava ali. O outro não respondeu logo. Depois, hesitante, disse que era por causa do Mestre.
- Do Mestre? O teu Mestre?
- Sim, não ouviste falar no Mestre?
- Não.
- Naquele que foi crucificado ontem no Golgotá?
- Ah, foi? Não sabia nada disso. Porque é que foi ele crucificado?
- Porque estava determinado que assim tinha que acontecer.
- Determinado? Estava decidido que ele seria crucificado?
- Sim. Está nas escrituras. Além disso, o próprio Mestre o profetizou.
- Ele predisse-o? E está nas escrituras? Não as conheço assim tão bem para estar a par do que elas dizem.
- Nem eu. Mas sei que é assim.
Barrabás não o duvidava. Mas porque motivo tinha o tal de fatalmente ser crucificado? De que serviria? Era bem estranho.
- É o que eu também acho. Não compreendo a razão dessa absoluta necessidade de morrer. E ainda por cima, de maneira tão horrível. Mas as coisas deviam passar-se como ele tinha profetizado. Tudo teve de acontecer como estava determinado. E ele mesmo - acrescentou o homem, inclinando a grande cabeça - repetiu tantas vezes que ia sofrer e morrer por nós...
Barrabás fixou-o no olhar.
- Morrer por nós?
- Sim. Em nosso lugar. Sofrer e morrer inocentemente, por nossa causa. Devemos admitir que somos nós os culpados e não ele.
Barrabás ficou a olhar para a rua e não perguntou mais nada durante um tempo.

domingo, 5 de outubro de 2008

De que falariam eles...


Apurou o ouvido, mas os homens baixaram de novo a voz e ele não conseguiu entender mais nada.

De que falariam eles?

Pela mesma rua passava gente e era impossível ouvir mais alguma coisa. Quando porém o silêncio voltou, ouviu o suficiente para perceber que era mesmo sobre o que pensava. Era dele que estavam a falar. Do homem que...

Coisa estranha... ele mesmo, pouco antes, também pensava no homem! Passando por acaso em frente ao portão do palácio, pensou no crucificado. Perto do lugar em que o condenado tinha sucumbido ao peso da cruz, recordava-se outra vez de tudo. E agora aquela gente falava desse mesmo homem... Era estranho. O que teriam que ver com o crucificado? E porque baixaram a voz? Só aquele homem robusto de cabelos ruivos falava às vezes de modo que se ouvia dali onde estava; a sua compleição de gigante parecia não se adaptar aos cochichos.

Diriam eles qualquer coisa acerca da... da tal escuridão? De ter escurecido no momento da sua morte?

Barrabás pôs-se a ouvir atentamente, com tal exaltação que o deveriam ter notado, pois calaram-se de repente; ficaram mudos durante muito tempo, sem proferir qualquer palavra olhando-o de esguelha. Depois, murmuraram entre si qualquer coisa que ele não conseguiu entender. Mais tarde, despediram-se do homem ruivo e foram embora. Eram quatro e nenhum deles agradou a Barrabás.

Ele continuou ali sentado, a sós com o tal "rapagão" atlético. Tinha grande desejo em dirigir-lhe a palavra, mas não atinava com o que dizer para começar... O homem movia os lábios e sacudiu várias vezes a grande cabeça. Segundo o hábito da gente simples, manifestava as suas preocupações por gestos. Finalmente, Barrabás perguntou-lhe sem rodeios qual era a causa da sua aflição. Ele ergueu , com ar perturbado, os olhos azuis, muito redondos, e nada respondeu. Mas, após ter encarado o desconhecido durante alguns segundos, com expressão ingénua e crédula, perguntou se Barrabás não era de Jerusalém. Não, não era. Mas parecia que falava com o sotaque das pessoas daquela cidade. Barrabás respondeu que não vinha de muito longe, era das montanhas, vinha do leste. Viu-se claramente que isso inspirou mais confiança ao outro. Não gostava muito do povo de Jerusalém, disse-o directamente; aquela gente não merecia a mínima confiança. Uns patifes, verdadeiros bandidos, isso sim... Barrabás riu-se e concordou plenamente. E ele, de onde vinha?

quinta-feira, 2 de outubro de 2008


No dia seguinte, passeando pela cidade, Barrabás encontrou muita gente conhecida, amigos e inimigos. Pareciam na maioria admirados de o ver, e havia os que estremeciam como se tivessem deparado com um fantasma. Isso causava-lhe uma sensação desagradável. Não sabiam então que ele fora libertado? Quando é que compreenderiam que não foi ele o crucificado?

O sol estava ardente; como era estranho os olhos habituarem-se àquela forte claridade! Teria contraído algum mal na vista durante a sua longa reclusão? Em todo o caso achou melhor ficar na sombra. Ao passar pela galeria de colunas da rua que conduzia à praça do templo, resolveu sentar-se sob a arcada para descansar um pouco os olhos. Na sombra sentiu um grande alívio.

Viu, mais adiante, alguns homens sentados ao longo da parede. Conversavam em voz baixa e não pareceram apreciar muito a sua chegada, pois olhavam-o de soslaio e baixaram ainda mais a voz. Ouvia uma ou outra palavra, mas era-lhe impossível seguir o fio da conversa. Aliás, esta não o interessava, os segredos daquela gente não eram da sua conta. Um deles, homem da sua idade, tinha também barba vermelha igual à sua, que se fundia completamente nos cabelos ruivos, bastos e desgranhados. Os olhos azuis tinham qualquer coisa de singularmente ingénuo, e o rosto era largo e cheio. Tudo nele era grande e forte. Era um rapagão desempenado e, a julgar pelas suas mãos e vestes, devia ser artesão. Pouco importava a Barrabás quem fosse aquele homem ou qual o seu aspecto, mas era uma dessas pessoas que não se pode deixar de notar, embora nada houvesse nele verdadeiramente fora do comum, a não ser os olhos azuis.

O homem estava evidentemente triste e os outros pareciam partilhar da sua tristeza. Deviam estar a falar de alguém que tinha morrido, ou coisa parecida. De vez em quando todos suspiravam dolorosamente, embora fossem homens adultos. Se, de facto, assim era, lamentavam a morte de alguém, fariam melhor deixar os queixumes para as mulheres, a quaisquer carpideiras.

De repente, Barrabás percebeu que o morto do qual falavam tinha sido crucificado - e que tinha sido ainda ontem. Ontem....?

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Continuaram assim até ao crepúsculo. Então os dois homens ergueram-se e declararam que era chegada a altura de se porem a caminho. Fizeram as despedidas, cobriram-se com peles de cabra, sob as quais ocultaram as armas, e esgueiraram-se para a rua, já imersa na semi-escuridão. As três mulheres, embriagadas e completamente exaustas, foram logo deitar-se atrás do pedaço de pano, onde não tardaram a adormecer. Uma vez a sós com Barrabás, a mulher gorda perguntou se não tinha chegado o momento para ambos também se entregarem ao prazer; ele bem podia precisar disso, depois dos maus tratos sofridos na prisão; quanto a ela, sentia o maior desejo em se entregar a um homem que penara tanto tempo numa masmorra e estivera prestes a ser crucificado. Ela conduziu-o ao terraço, onde havia uma cabana de folhas de palmeira para a estação quente. Deitaram-se e, tendo ela afagado-o um pouco, Barrabás rejeitou as mãos dela e pareceu de repente esgotado e esquecido do mundo que o rodeava.
Ela virou-se para o lado, irritada e adormeceu pouco depois. Ele, porém, continuou acordado junto ao corpo abastado da mulher, olhando a cobertura da cabana de folhas. Pensava no homem pregado à cruz do centro e do que se passara na colina do suplício. Em seguida, pôs-se a pensar no caso da misteriosa escuridão. Seria, como os outros tinham dito, pura imaginação? Ou talvez um fenónemo que só aconteceu no Golgotá, já que ninguém o notara em outros lugares? Lá no alto escurecera, não havia a menor dúvida, pois até os soldados tinham sido tomados de pavor. Ou também teria ele imaginado isso? Não passaria de um produto da sua imaginação tudo o que vira? Não, ele não conseguia desvendar o intricado caso, não compreendia o que tinha sido aquilo...
Pensou de novo no crucificado. Deitado, com os olhos abertos, sem conseguir adormecer, sentia o contacto das costas gordas da mulher. Através das folhas podia ver o céu. Devia ser o céu, embora ali não brilhasse uma única estrela. Ali só havia a imensa escuridão...
A escuridão que reinava sobre o Golgotá e sobre o mundo.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Olhou-os pouco seguro de si...


Barrabás, porém, olhou-os pouco seguro de si mesmo, depois pareceu aliviado. Aprumou-se um pouco, estendeu a mão para a caneca e bebeu a grandes goles. Não a largou desta vez; esticou o braço para que a enchessem de novo, o que logo se fez. Todos beberam. Percebia-se que começava a achar gosto no vinho. Bebia agora como costumava fazer outrora, quando o convidavam, e notava-se que a bebida o reanimava. Não se tornou comunicativo em excesso, mas pôs-se a contar como vivera na prisão. Tinha sido um inferno. Não era de admirar ainda estar meio tonto. Mas tinha escapado, imaginem. Não era pouco; quando metem a garra em alguém, não o soltam mais! Uma sorte do diabo, safa! Em primeiro lugar, porque estivera para ser crucificado justamente no tempo da Páscoa, quando é costume libertar-se um condenado. E depois, porque fora justamente ele o escolhido! Uma sorte danada! Era também sua opinião, e quando os companheiros lhe davam palmadas nas costas e se inclinavam para ele, soprando-lhe no rosto o hálito quente, ele ria-se e bebia com eles, com um por um. Animou-se, a sua vivacidade foi aumentando cada vez mais, o vinho subia-lhe à cabeça. Abriu a túnica por causa do calor e espichou-se todo, como os outros, pondo-se mais à vontade. Agora, sim, sentia-se bem. Pôs os braços em torno da mulher que lhe estava mais próxima e puxou-a para si. Às gargalhadas, ela pendurou-se-lhe no pescoço. Mas a gorda arrancou-o dela, dizendo que agora o estava a reconhecer, que ele estava como devia estar, que tinha recuperado o seu estado normal, depois da horrível prisão. Nunca mais ele devia imaginar bobagens, nem ver escuridão. Nada disso; não, não, não.... Atraiu-o para si, passando-lhe os dedos carnudos na nuca e brincou com a sua barba vermelha. Todos se alegraram com a mudança, vendo que ele era outra vez o mesmo de sempre, voltando a ter, como antes, os seus momentos de humor. Entregaram-se a uma alegria desenfreada. Beberam, conversaram, concordaram em tudo, acharam muito agradável o momento que estavam a passar juntos, e um animou o outro e a bebida animou todos. Estes homens, desde vários meses não provavam uma gota de vinho nem viam uma única mulher; estavam a tirar a desforra. Dentro em breve voltariam às montanhas, não lhes restava muito tempo. Era preciso festejar a conveniente passagem por Jerusalém e a libertação de Barrabás. Embriagaram-se com o vinho acre e forte e entregavam-se ao prazer com todas as mulheres, menos a gorda, levando-as para trás de uma peça de pano estendida no outro extremo do quarto, de onde saíam vermelhos e esbaforidos, para recomeçar a beber e a vociferar. Faziam tudo de modo completo, como era costume.

terça-feira, 23 de setembro de 2008


[Devido a uma ausência mais longa que o previsto em Birmingham, U.K., Barrabás volta com mais um episódio (curto desta vez...)]


Aos poucos conseguiram que ele não ficasse ali taciturno, matutando. Beberam e conversaram durante algum tempo e parecia-lhes que ele já não estava tão estranho.
Mas, enquanto discutiam os mais variados assuntos, ele saiu-se com um pergunta espantosa. Queria saber o que achavam da escuridão daquele dia, como que o sol perdera o brilho durante algum tempo.

- Escuridão? Que escuridão? - fitaram-nos admirados. - Aqui não houve escuridão nenhuma. Quando foi isso?


- Por volta da sexta hora, mais ou menos.

- Ah, que história... Ninguém viu nada disso!

Ele ficou perturbado e lançou olhares desconfiados, de um para o outro. Todos asseguraram que não tinham visto escuridão alguma, que ninguém em toda a Jerusalém viu qualquer coisa de anormal.
Teria sido impressão sua, teria ele imagiando aquela escuridão em pleno dia? Era muito estranho. Se ele, de facto, viu tudo a escurecer, devia sem dúvida estar a sofrer da vista, se calhar por ter estado tanto tempo na prisão. É, devia ser isso mesmo...

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Que milagres fazia ele?


- Que milagres costumava fazer aquele pregador? - perguntou Barrabás, voltando-se para as mulheres. - E o que pregava ele, afinal?

Responderam-lhe que curava os enfermos e afugentava os maus espíritos. Dizia-se também que tinha ressuscitado os mortos, mas ninguém sabia se era mesmo verdade; com certeza não era. Quanto ao que pregava, não tinham a menor idéia. No entanto, uma das mulheres conhecia certa história que o pregador tinha contado: Um homem preparara um grande festim, de núpcias ou coisa parecida; os convidados, porém, não compareceram, e foi preciso sair pelas ruas e convidar qualquer pessoa que surgisse; o que conseguiram reunir foi uma farândola de mendigos e pobres miseráveis, famintos e quase sem roupa no corpo; então, parece, o grande senhor enfureceu-se, ou teria dito que tudo lhe era indiferente. A mulher não se lembrava bem como era a história, mas Barrabás escutava com a máxima atenção, como se lhe estivessem a contar algo de extraordinário. E quando uma delas acrescentou que o homem era daqueles que acreditavam ser o Messias, passou a mão pela barba vermelha e ficou pensativo. Parecia reflectir em alguma coisa...

- O Messias? Não, não deve ter sido... - murmurou para si mesmo.

- Claro que não, nem podia ser - disse um dos homens - Se fosse, nunca o poderiam ter crucificado; os próprios demónios teriam sido atirados por terra. Então não se sabia o que era um Messias?

- Naturalmente! Ele teria descido da cruz e morto a todos de um só golpe!

- Um Messias que se deixa crucificar! Já se ouviu falar em semelhante coisa?

Barrabás continuava a passar a larga mão pela barba, os olhos postos no chão de terra batida.

- Não, não era o Messias...

- Vamos Barrabás, beba e não fique aí a resmungar! - disse um dos companheiros, dando-lhe um empurrão.

Era singular que ousasse fazê-lo, mas fazia-o. Barrabás de facto sorveu um gole da caneca de barro, afastando-a de si meditativo. Pressurosas, as mulheres encheram-na de novo e fizeram-no beber mais um gole. O vinho forçosamente produzia algum efeito, mas ele continuou distraído.

- Agora trata de beber, e alegra-te por teres escapado e te encontrares entre os teus melhores amigos, passando bem, em vez de estares a apodrecer numa cruz. Não é melhor assim? - disse-lhe um dos companheiros dando-lhe um empurrão. - Não estás bem aqui, hein? Pensa nisso Barrabás! Salvaste a tua pele, vives. Tu vives, Barrabás!

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A mulher de lábio leporino...


A mulher de lábio leporino, até agora acocorada a um canto e aparentemente distraída, após ter escutado o que diziam do outro homem, começou a portar-se de modo muito estranho. Ergueu-se e olhando Barrabás fixamente e com expressão de espanto no rosto pálido e famélico, gritou por ele com voz estranha e anasalada.

Nada havia de extraordinário; ela apenas o chamou pelo nome, mas todos a encararam admirados, sem compreender o que ela queria dizer. Os modos de Barrabás também eram estranhos, o seu olhar ia inquieto, de um lado para o outro, como quando ele queria evitar olhar directamente para alguém. O que significava tudo aquilo não se podia saber e, de mais a mais, pouco importava; o melhor era fazer de conta que não havia nada. Barrabás era bom companheiro, não havia como negá-lo, mas era assim mesmo, nunca se chegava a saber ao certo o que se passava dentro dele.

A mulher tornou-se a acocorar-se no seu canto, num pedaço de esteira estendido no chão de terra batida, mas sem tirar de Barrabás os seus olhos ardentes.

A mulher gorda trouxe comida para Barrabás, pois ocorreu-lhe que deveria estar esfomeado: certamente não se ganhava o que comer naquelas malditas e imundas cadeias. Pôs na mesa, na frente dele, pão, sal e um pedaço de carne seca de ovelha. Ele não comeu quase nada e passou os alimentos à mulher de lábio leporino, fingindo já estar satisfeito. Ela atirou-se à comida, devorando-a com a avidez de um animal. Depois precipitou-se para fora de casa e desapareceu.

Alguém se lembrou de perguntar quem era aquela mulher, mas naturalmente Barrabás nada respondeu. Este era o seu modo. Era sempre assim, não se conseguia arrancar dele qualquer coisa, quando se tratava das suas coisas pessoais.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Riram-se das suas palavras...


Riram-se das suas palavras e ela ergueu-se enfurecida, gritando que os poria a todos no olho da rua, menos a Barrabás. Os outros soltaram estrondosas gargalhadas ao ouvir aquela mulher gorda falar-lhes daquela maneira. Acalmaram-se, porém e em seguida ficaram sérios e puseram-se a conversar em voz baixa com Barrabás, contando-lhe que iam voltar à montanha nesse mesmo dia, assim que escurecesse; tinham vindo só para sacrificar um cabrito que haviam trazido; como não foi aceite, tinham-no vendido e, em seu lugar, ofereceram duas pombas imaculadas; com o restante dinheiro, estavam a divertir-se ali naquela casa, daquela mulher gorda. Queriam saber quando é que Barrabás se iria unir-se a eles, lá em cima, informando-o acerca do actual esconderijo deles. Barrabás fez sinal com a cabeça, indicando que compreendia, mas nada respondeu.

Uma das mulheres pôs-se a falar do homem que tinha sido sacrificado em lugar de Barrabás. Ela tinha-o o visto uma vez, só de passagem, e tinham-lhe assegurado que se tratava de um rabi muito versado nas escrituras e que percorria o país fazendo profecias e milagres. Isso não era nada de mal, tantos outros o faziam também; certamente havia outro motivo pelo qual o tinham sacrificado. Era um homem magro, disso ela ainda se lembrava. Outra disse que nunca o tinha visto, mas que tinha ouvido falar nas suas profecias; ele vaticinava que o templo ia desmoronar-se, que Jerusalém seria destruida por um cataclismo, e que, em seguida, as chamas consumiriam o céu e a terra; enfim, coisas absurdas. Não era pois de estranhar que o tivessem crucificado. A terceira acrescentou que ele convivia com os pobres, tendos-lhe prometido que entrariam no reino de Deus; até às prostitutas ele o prometera. Todos riram muito e acharam que não seria nada mau, se fosse verdade.

Barrabás escutava-os e parecia agora menos absorto, embora não lhe aflorasse aos lábios o mais leve sorriso. Teve um sobressalto quando a mulher gorda lhe atirou os braços em volta do pescoço, dizendo que não lhe interessava absolutamente quem tinha sido o outro, que de qualquer maneira estava morto àquela hora. Ele é que fora crucificado, e não Barrabás; tudo o mais não tinha importância.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

De uma porta que se abria como negra caverna...


De uma porta que se abria como negra caverna, partiam vozes ruidosas e, no momento em que passava, uma mulher grande e gorda saiu, toda alvoroçada, e chamou Barrabás. Estava embriagada e, ao vê-lo, agitou os enormes braços em tumultuosa alegria, querendo fazê-lo entrar imediatamente. Ele hesitou um pouco, embaraçado, mas a mulher arrastou-o para dentro. No interior da casa, foi recebido com efusivas exclamações, por dois homens e três mulheres que só pode distinguir depois de algum tempo, quando os seus olhos se acostumaram à penumbra reinante. Apressaram-se a dar-lhe um lugar na mesa, encheram-lhe um copo com vinho e puseram-se a falar, todos ao mesmo tempo. Imaginem, ter ele saído da prisão, ter sido perdoado! Que grande sorte, crucificaram outro no seu lugar! Transbordavam de vinho e de ansia em partilhar a sua sorte, tocavam-o com as mãos, para que a sorte passase para eles.

Barrabás bebeu com eles, mas não falou muito. Durante a maior parte do tempo fitava o vácuo com os seus olhos castanhos-escuros, fundos demais, que pareciam estar-se a esconder. Acharam-no um pouco estranho, mas ele às vezes era assim mesmo.

As mulheres deram-lhe mais vinho. Ele bebeu de novo e deixou que os outros falassem, sem se meter muito na conversa.

Por fim, os seus companheiros começaram a admirar a sua atitude, sem saberem o que havia com ele. Um homem de aspecto desagradável, pousou as mãos nos ombros dizendo que entendia muito bem o seu estado de espirito, após tanto tempo no cárcere, quase morto, porque ser condenado à morte é o mesmo que morrer; ser depois perdoado e solto é como ressuscitar. Ele morrera, pois, e nasceu de novo, o que não era o mesmo que que estar vivo, assim como todos os outros...

domingo, 14 de setembro de 2008

Ele mesmo teve medo.




Ele mesmo teve medo. Ficou contente quando começou a clarear e as coisas aos poucos foram tomando o aspecto normal. A claridade veio lentamente, como de manhã, quando o dia começa a expontar; espalhou-se sobre a colina e pelas oliveiras dos arredores. Os pássaros, que tinham emudecido, puseram-se de novo a chilrear. Era exactamente como a alvorada de um novo dia.

Os parentes, lá no alto, permaneciam em silêncio. Não se ouviam mais lamentos nem prantos. Todos contemplavam o homem na cruz, até mesmo os soldados. Pairava sobre a terra uma grande paz.

Agora ele podia ir-se embora, se quisesse. Tudo estava acabado. O sol brilhava de novo e as coisas estavam como de costume. As trevas duraram apenas um momento, enquanto o homem morria.

Sim, agora tinha de ir. Era preciso ir-se embora, claro. Nada mais o prendia ali. Não tinha motivo algum para ficar, pois o outro estava morto. Antes de pôr-se a caminho, ainda pode ver que o desciam da cruz. Viu então que dois homens o amortalhavam num pano de linho. O corpo era completamente branco, e os homens trabalhavam com excesso de cuidado, como se temessem magoá-lo, causar-lhe o minimo mal. Essa atitude era bem estranha, pois o homem tinha sofrido o suplicio da cruz, e tudo o mais. Aquela gente era mesmo estranha. A mãe, porém, contemplava com olhos sem lágrimas aquele que tinha sido o seu filho; rosto trigueiro parecia incapaz de exprimir pesar, revelando apenas que ela nunca poderia entender o que se passara. A mãe, sim, Barrabás compreendia melhor.

Quando o pequeno grupo passou perto dele, os homens carregando o cadaver amortalhado, as mulheres seguindo o triste cortejo, uma delas, apontando Barrabás, disse baixinho qualquer coisa à mãe. Esta parou e lançou-lhe um olhar tão cheio de desespero que ele nunca mais o poderia esquecer...

Continuaram a descer o Golgota, tomando depois outro caminho à esquerda. Mantendo distância suficiente, ele seguiu-os até um jardim das vizinhanças, onde colocaram o cadáver numa sepultura cavada na rocha. Após terem orado em frente ao sepulcro, fecharam-no com uma grande pedra e partiram.

Barrabás, por sua vez, aproximou-se e ficou ali parado por algum tempo. Não orou, pois era um malfeitor e sua prece não seria ouvida, sobretudo por não ter expiado a sua culpa. Além disso não conhecia o morto. Todavia, deteve-se um pouco em frente à sepultura. E depois, tomou o caminho de Jerusalém.

sábado, 13 de setembro de 2008

Se alguém parecia sem poder algum, era aquele homem.

Um poder! Se alguém parecia sem poder algum, era aquele homem. Impossível imaginar-se um supliciado de aspecto mais miserável. Os outros dois não causavam impressão tão lamentável nem pareciam sofrer tanto; notava-se-lhes maior reserva de energias. O do meio, nem tinha forças para erguer a cabeça, que lhe caía sobre o peito.

Mas eis que a ergueu um pouco; o peito magro e sem pelos arfava, e ele passou, arquejante, a lingua nos lábios ressequidos. Gemeu alguma coisa, querendo dizer que tinha sede. Aborrecidos com aquele condenado que custava tanto a morrer, os soldados, reunidos um pouco mais adiante, no alto da encosta, jogavam dados e não o ouviram. Um dos seus parentes, porém, desceu então até onde eles estavam e disse-lhes o que se passava. De má vontade, um dos soldados ergueu-se, molhou uma esponja numa vasilha de barro e estendeu-a, na ponta de uma vara, ao condenado. Este porém, sentindo o gosto da lama da água que lhe era oferecida, não a quis, o que provocou o riso do soldado velhaco; quando este voltou para junto dos seus camaradas e contou o caso, todos se puseram a rir.

Os parentes, ou o que quer que fossem as pessoas ali reunidas, ergueram, desesperados, os olhos para o infeliz crucificado, que respirava cada vez com mais dificuldade, sendo evidente que o fim estava próximo. Bom seria que estivesse, que aquela tortura acabasse. O mesmo pensava ele, cá em baixo, contemplando a cena. Que os sofrimentos do outro terminassem logo! Assim que tudo estivesse acabado, apressar-se-ia em sair dali e nunca mais pensaria naquilo...

Súbitamente, porém, densas sombras envolvendo toda a colina se condensaram, como que o sol tivesse perdido o brilho. A escuridão tornou-se quase completa. Ouviu-se, nas trevas, o crucificado gritar em voz alta:
- Pai, Pai, porque me abandonaste?

As palavras ecoaram lugubremente. O que ele quereria dizer com isso? E porque escurecia assim? Estava-se em pleno dia... Era incompreensivel.

A visão das três cruzes, aparecendo como vagas silhuetas lá no alto, dava calafrios. Certamente algo de terrível estava para acontecer. Os soldados ergueram-se de um salto e empunharam as lanças; quando qualquer acontecimento imprevisto sucedia, este era o primeiro impulso deles. Ficaram em torna da cruz, brandindo as lanças, e foi capaz de ouvir os murmurios que trocavam, apavorados. Estavam com medo! Já não escarneciam! Eram supertisciosos, naturalmente.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Toda aquela gente, aglomerada em volta da cruz...

Toda aquela gente, aglomerada em volta da cruz, precisaria mesmo de estar ali? A não ser que eles próprios quisessem, nada obrigava aqueles homens e mulheres a permanecer ali naqueles lugares impuros. Eram provávelmente parentes e amigos íntimos do homem, e, coisa curiosa, pareciam não temer absolutamente o sítio infecto.

Aquela mulher devia ser a sua mãe. Quase não se parecia com ele. Mas quem podia parecer-se com ele? De feições rudes e amargurada, ela tinha o aspecto de uma camponesa. De vez em quando passava as costas da mão na boca e no nariz, que escorria, por estar ela a ponto de chorar. No entanto não chorava. Não se afligia, nem olhava, como faziam os outros, para o filho crucificado. Era sua mãe, sem dúvida. Provávelmente sentia a maior compaixão, mas parecia ao mesmo tempo censurá-lo por estar ali, por ter-se portado de forma a deixar-se crucificar. De um modo ou de outro, a sua conduta deveria tê-lo levado a isso, por mais que ele fosse puro e inocente, e ela certamente não o poderia aprovar. Sendo sua mãe, tinha a certeza absoluta de que ele era inocente; fosse qual fosse a sua culpa, ela o teria, naturalmente, considerado como tal.

Quanto a ele, Barrabás, que contemplava a cena, já não tinha mãe. No pai, nem queria falar. Não tinha já parentes próximos, que soubesse pelo menos. Se o crucificado fosse ele, não haveria tantas lamentações em volta daquele homem. Aquela gente batia no peito e portava-se como quem nunca tivesse enfrentado desgraça semelhante; era um nunca acabar de pranto e suspiros.

Conhecia bem o crucificado da direita. Se este o visse, teria imaginado que viera por sua causa, para vê-lo sofrer. E absolutamente não era assim, o motivo da sua vinda era bem outro. Mas nada tinha contra o facto de o ver na cruz. Se alguém merecia a morte era esse patife, embora por motivo bem diverso do evocado na sentença.

Porquê então olhava para este e não para o do meio, crucificado em seu lugar, e que por sua causa estava ali? Porquê olhava para aquele que o obrigara a vir, que exercia sobre ele tão estranho poder?

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Todos sabem como ele foi crucificado

Todos sabem como ele foi crucificado, juntamente com dois outros, e quais as pessoas que se encontravam à sua volta. Eram Maria, sua mãe, Maria Madalena e Verónica, Simão de Cireneu, que o tinha ajudado a carregar a cruz, e José de Arimateia, que o deveria amortalhar. Um pouco afastado dos outros, porém, mais abaixo na encosta, um homem observava constantemente aquele que estava pregado na cruz, lá no alto, acompanhando a sua agonia do início até ao fim. Chamava-se Barrabás.

Era um homem robusto de cerca de trinta anos de idade, tez amarela palida, barba avermelhada e cabelos pretos. Também as suas sobrancelhas eram pretas, e os olhos, muito fundos, pareciam esconder-se nas orbitas. Uma profunda cicatriz, começando em baixo do olho, desaparecia-lhe pela barba adentro. Mas, o aspecto de um homem bem pouco significa.

Tinha seguido a multidão pelas ruas, desde o pretório, mas guardando distância, um pouco atrás dos outros, e quando, exausto, o rabi prostou-se sob o peso da cruz, detivera-se um momento para não se aproximar do local onde jazia o madeiro. Tinham então forçado Simão Cireneu a tomar o lugar do condenado e carregá-la. Quase não havia homens na multidão a não ser, naturalmente, os soldados romanos; os que seguiam o condenado à morte eram, na sua maioria, mulheres. Havia ainda um bando de rapazotes que sempre corria atrás quando passava alguém que ia ser crucificado, pois viam naquilo um espectaculo divertido. Cansaram-se rápidamente, porém, e voltaram aos seus brinquedos e brincadeiras de infância, após terem lançado um olhar ao homem com a grande cicatriz na face, que caminhava atrás dos outros.

De pé no lugar do suplício, contemplava agora aquele que estava pregado na cruz, no centro, sem poder tirar os olhos de lá. Não tivera a intenção de subir até ali, onde tudo era impuro e infecto, pois, quando se colocavam os pés naquela área de terra maldita, deixava-se nela qualquer coisa de si mesmo: podia-se voltar, forçado por um impulso maléfico, para nunca mais sair dali. Cranios e ossadas jaziam espalhados pelo chão, ao lado de cruzes tombadas, meio apodrecidas, não prestando para mais nada. Ninguém tocava neles. Porque permanecia ele ali? Não conhecia o crucificado e nada tinha que ver com ele. Que fazia no Golgota, se tinha sido libertado?

A cabeça do crucificado pendia para a frente e ele respirava com dificuldade; não lhe restava, certamente, muito tempo de vida. Não era um homem robusto. Seu corpo era magro e fraco, e os seus braços finos pareciam nunca ter servido para alguma coisa. Homem estranho, aquele... A sua barba era rala; o peito, sem pêlos, era como o de um adolescente. O homem que o observava não gostou do seu aspecto.

Mas, desde que o vira pela primeira vez, no pátio do pretório, sentia haver algo de extraordinário nele. Não sabia bem o que era, apenas o sentia. Parecia-lhe nunca ter visto antes um homem assim. Devia ser porque como acabava de sair do cárcere, os seus olhos ainda não estavam acostumados à claridade, mas vira-o, no primeiro momento, rodeado de uma brilhante auréola de luz. Pouco depois, porém, o brilho desapareceu; os seus olhos voltavam ao normal, viam agora tudo nitidamente, não apenas o homem solitário no pátio do palácio. No entanto, persistia a impressão de que havia algo muito estranho naquele homem, de que ele era diferente de todos os outros homens. Não conseguia ver nele, absolutamente, um prisioneiro, como ele o fora. Não podia compreender. Não que fosse da sua conta, mas... como podiam condenar assim? O homem era inocente, quanto a isso não havia dúvida.

Tinham-no levado para crucificá-lo, enquanto a ele, Barrabás, tiraram os ferros e declararam-no livre. Não dependia de sua vontade, isso era lá com eles... Podiam escolher quem muito bem entendessem, era direito deles, e, a sorte, decidira. Ambos estavam condenados à morte e um tinha que ser absolvido. Ele, inclusive, tinha sido o primeiro a admirar-se da escolha. Enquanto o libertavam das correntes, tinha visto o outro, já com a cruz nos ombros, desaparecer entre os soldados.

Ficara a olhar para o caminho agora vazio e um soldado deu-lhe um empurrão, gritando:
- Porque é que ainda estás aí? És livre, sai daqui para fora!

Ele então despertou, e ao ver o outro a arrastar a cruz pela rua, segui-o. Porquê? Ignorava-o. Nem sabia porque é que ficara horas a observar a crucificação e a longa agonia do condenado, pois nada tinha que ver com tudo aquilo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Quem foi Barrabás?

"...E logo pela manhã, os sumos sacerdotes, os anciãos, os escribas e todo o sinédrio resolveram atar Jesus e levá-lo a Pôncio Pilatos.
O governador romano agitou-se, mal humorado, na poltrona. Sempre naquela negregada província lhe estavam a arranjar complicações. Contemplou o homem que ali se encontrava de mãos atadas e perguntou:
- De que o acusam?
Vozes partiram de diversos pontos, cada qual procurando carregar mais na acusação:
- Estava a sublevar o povo, mandava não pagar imposto a César e dizia ser o rei dos Judeus.
Pilatos fixa o prisioneiro e interpela-o:
- És o rei dos Judeus?
- Tu o dizes! - responde o homem de olhar sereno.
As acusações repetem-se. exarcebadas e iracundas.
Ao espirito latino do governador romano repugnavam aqueles fanatismos.
- Não vejo culpa alguma neste homem.
Mas como convencer os acusadores? Contrariá-los também é perigoso. Pilatos hesita, morde os lábios, quando ouvindo dizer que o prisioneiro é da Galiléia, lhe ocorre descartar-se dele, enviando-o a Herodes, a cuja jurisdição estava afecta aquela provincia. Seria ao memso tempo, a oportunidade para uma deferência ao outro, com quem desde muito se achava de relações estremecidas.
Herodes recebe Jesus, diverte-se com ele, manda cobri-lo de branco e nesses trajes recambia-o a Pilatos numa troca habilidosa de deferências. Coisas da política! Jesus serve de pretexto feliz para a reconciliação dos dois poderosos.
Mas, de auqlquer maneira, Pilatos continua embaraçado. Não vê culpa alguma no prisioneiro e não sabe como libertá-lo. sem acarretar com as iras dos sacerdotes e do povo, que podem ser funestas ao delegado de Roma nessa Judeia negregada, onde campeiam as intrigas. E eis que lhe ocorre outra idéia. No dia da grande festa, costumava o governador soltar um preso à vontade do povo. Havia então um criminoso de nome Barrabás, acusado de vários crimes entre eles o de ter assasinado um homem num motim e respondendo, assim, perante a lei judia como assasino e perante a lei romana como rebelde. Deveria sofrer a pena máxima. Pilatos, voltando-se para o povo, propõe:
- Qual quereis que eu solte: Barrabás ou Jesus, o que se chama Cristo?
Pretendia com isso salvar Jesus, pois estava certo de que o povo não iria preferir a libertação de Barrabás, homem cruel, cuja preversidade era por todos conhecida. Mas aconteceu o que Pilatos não previra: os principes dos sacerdotes e os anciãospersuadiram o povo a que pedisse Barrabás.
Assim se deu: o povo optou por Barrabás. Visivelmente contrariado, o governador romano perguntou ainda o que devia fazer de Jesus. Todos responderam a um só tempo:
- Crucifica-o!
Pilatos insiste:
- Que mal fez ele?
Os gritos repetem-se mais vigorosos:
- Crucifica-o! Crucifica-o!"

O resto da história é conhecida de todos: Barrabás foi libertado e Jesus foi crucificado, no alto do Golgotá, entre dois ladrões.
Os evangelhos não acrescentam mais uma palavra sobre o destino de Barrabás. Nenhuma lenda, nenhuma tradição nos dá qualquer outra notícia dele. Pelo menos que eu saiba, nunca ouvi falar dele.
Que teria sido desse homem perverso, coração enegrecido pelo ódio, que já contava, certamente, com a pena máxima e que depois se tornou livre, de um momento para o outro, graças ao ódio mais denso despertado no povo por um Inocente? Como veria Barrabás esse desfecho imprevisto que o restituía à vida e à liberdade? Continuaria na senda do crime ou experimentaria aquela alma turva algum bafejo da graça? Ninguém soube ou saberá...