segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Continuaram assim até ao crepúsculo. Então os dois homens ergueram-se e declararam que era chegada a altura de se porem a caminho. Fizeram as despedidas, cobriram-se com peles de cabra, sob as quais ocultaram as armas, e esgueiraram-se para a rua, já imersa na semi-escuridão. As três mulheres, embriagadas e completamente exaustas, foram logo deitar-se atrás do pedaço de pano, onde não tardaram a adormecer. Uma vez a sós com Barrabás, a mulher gorda perguntou se não tinha chegado o momento para ambos também se entregarem ao prazer; ele bem podia precisar disso, depois dos maus tratos sofridos na prisão; quanto a ela, sentia o maior desejo em se entregar a um homem que penara tanto tempo numa masmorra e estivera prestes a ser crucificado. Ela conduziu-o ao terraço, onde havia uma cabana de folhas de palmeira para a estação quente. Deitaram-se e, tendo ela afagado-o um pouco, Barrabás rejeitou as mãos dela e pareceu de repente esgotado e esquecido do mundo que o rodeava.
Ela virou-se para o lado, irritada e adormeceu pouco depois. Ele, porém, continuou acordado junto ao corpo abastado da mulher, olhando a cobertura da cabana de folhas. Pensava no homem pregado à cruz do centro e do que se passara na colina do suplício. Em seguida, pôs-se a pensar no caso da misteriosa escuridão. Seria, como os outros tinham dito, pura imaginação? Ou talvez um fenónemo que só aconteceu no Golgotá, já que ninguém o notara em outros lugares? Lá no alto escurecera, não havia a menor dúvida, pois até os soldados tinham sido tomados de pavor. Ou também teria ele imaginado isso? Não passaria de um produto da sua imaginação tudo o que vira? Não, ele não conseguia desvendar o intricado caso, não compreendia o que tinha sido aquilo...
Pensou de novo no crucificado. Deitado, com os olhos abertos, sem conseguir adormecer, sentia o contacto das costas gordas da mulher. Através das folhas podia ver o céu. Devia ser o céu, embora ali não brilhasse uma única estrela. Ali só havia a imensa escuridão...
A escuridão que reinava sobre o Golgotá e sobre o mundo.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Olhou-os pouco seguro de si...


Barrabás, porém, olhou-os pouco seguro de si mesmo, depois pareceu aliviado. Aprumou-se um pouco, estendeu a mão para a caneca e bebeu a grandes goles. Não a largou desta vez; esticou o braço para que a enchessem de novo, o que logo se fez. Todos beberam. Percebia-se que começava a achar gosto no vinho. Bebia agora como costumava fazer outrora, quando o convidavam, e notava-se que a bebida o reanimava. Não se tornou comunicativo em excesso, mas pôs-se a contar como vivera na prisão. Tinha sido um inferno. Não era de admirar ainda estar meio tonto. Mas tinha escapado, imaginem. Não era pouco; quando metem a garra em alguém, não o soltam mais! Uma sorte do diabo, safa! Em primeiro lugar, porque estivera para ser crucificado justamente no tempo da Páscoa, quando é costume libertar-se um condenado. E depois, porque fora justamente ele o escolhido! Uma sorte danada! Era também sua opinião, e quando os companheiros lhe davam palmadas nas costas e se inclinavam para ele, soprando-lhe no rosto o hálito quente, ele ria-se e bebia com eles, com um por um. Animou-se, a sua vivacidade foi aumentando cada vez mais, o vinho subia-lhe à cabeça. Abriu a túnica por causa do calor e espichou-se todo, como os outros, pondo-se mais à vontade. Agora, sim, sentia-se bem. Pôs os braços em torno da mulher que lhe estava mais próxima e puxou-a para si. Às gargalhadas, ela pendurou-se-lhe no pescoço. Mas a gorda arrancou-o dela, dizendo que agora o estava a reconhecer, que ele estava como devia estar, que tinha recuperado o seu estado normal, depois da horrível prisão. Nunca mais ele devia imaginar bobagens, nem ver escuridão. Nada disso; não, não, não.... Atraiu-o para si, passando-lhe os dedos carnudos na nuca e brincou com a sua barba vermelha. Todos se alegraram com a mudança, vendo que ele era outra vez o mesmo de sempre, voltando a ter, como antes, os seus momentos de humor. Entregaram-se a uma alegria desenfreada. Beberam, conversaram, concordaram em tudo, acharam muito agradável o momento que estavam a passar juntos, e um animou o outro e a bebida animou todos. Estes homens, desde vários meses não provavam uma gota de vinho nem viam uma única mulher; estavam a tirar a desforra. Dentro em breve voltariam às montanhas, não lhes restava muito tempo. Era preciso festejar a conveniente passagem por Jerusalém e a libertação de Barrabás. Embriagaram-se com o vinho acre e forte e entregavam-se ao prazer com todas as mulheres, menos a gorda, levando-as para trás de uma peça de pano estendida no outro extremo do quarto, de onde saíam vermelhos e esbaforidos, para recomeçar a beber e a vociferar. Faziam tudo de modo completo, como era costume.

terça-feira, 23 de setembro de 2008


[Devido a uma ausência mais longa que o previsto em Birmingham, U.K., Barrabás volta com mais um episódio (curto desta vez...)]


Aos poucos conseguiram que ele não ficasse ali taciturno, matutando. Beberam e conversaram durante algum tempo e parecia-lhes que ele já não estava tão estranho.
Mas, enquanto discutiam os mais variados assuntos, ele saiu-se com um pergunta espantosa. Queria saber o que achavam da escuridão daquele dia, como que o sol perdera o brilho durante algum tempo.

- Escuridão? Que escuridão? - fitaram-nos admirados. - Aqui não houve escuridão nenhuma. Quando foi isso?


- Por volta da sexta hora, mais ou menos.

- Ah, que história... Ninguém viu nada disso!

Ele ficou perturbado e lançou olhares desconfiados, de um para o outro. Todos asseguraram que não tinham visto escuridão alguma, que ninguém em toda a Jerusalém viu qualquer coisa de anormal.
Teria sido impressão sua, teria ele imagiando aquela escuridão em pleno dia? Era muito estranho. Se ele, de facto, viu tudo a escurecer, devia sem dúvida estar a sofrer da vista, se calhar por ter estado tanto tempo na prisão. É, devia ser isso mesmo...

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Que milagres fazia ele?


- Que milagres costumava fazer aquele pregador? - perguntou Barrabás, voltando-se para as mulheres. - E o que pregava ele, afinal?

Responderam-lhe que curava os enfermos e afugentava os maus espíritos. Dizia-se também que tinha ressuscitado os mortos, mas ninguém sabia se era mesmo verdade; com certeza não era. Quanto ao que pregava, não tinham a menor idéia. No entanto, uma das mulheres conhecia certa história que o pregador tinha contado: Um homem preparara um grande festim, de núpcias ou coisa parecida; os convidados, porém, não compareceram, e foi preciso sair pelas ruas e convidar qualquer pessoa que surgisse; o que conseguiram reunir foi uma farândola de mendigos e pobres miseráveis, famintos e quase sem roupa no corpo; então, parece, o grande senhor enfureceu-se, ou teria dito que tudo lhe era indiferente. A mulher não se lembrava bem como era a história, mas Barrabás escutava com a máxima atenção, como se lhe estivessem a contar algo de extraordinário. E quando uma delas acrescentou que o homem era daqueles que acreditavam ser o Messias, passou a mão pela barba vermelha e ficou pensativo. Parecia reflectir em alguma coisa...

- O Messias? Não, não deve ter sido... - murmurou para si mesmo.

- Claro que não, nem podia ser - disse um dos homens - Se fosse, nunca o poderiam ter crucificado; os próprios demónios teriam sido atirados por terra. Então não se sabia o que era um Messias?

- Naturalmente! Ele teria descido da cruz e morto a todos de um só golpe!

- Um Messias que se deixa crucificar! Já se ouviu falar em semelhante coisa?

Barrabás continuava a passar a larga mão pela barba, os olhos postos no chão de terra batida.

- Não, não era o Messias...

- Vamos Barrabás, beba e não fique aí a resmungar! - disse um dos companheiros, dando-lhe um empurrão.

Era singular que ousasse fazê-lo, mas fazia-o. Barrabás de facto sorveu um gole da caneca de barro, afastando-a de si meditativo. Pressurosas, as mulheres encheram-na de novo e fizeram-no beber mais um gole. O vinho forçosamente produzia algum efeito, mas ele continuou distraído.

- Agora trata de beber, e alegra-te por teres escapado e te encontrares entre os teus melhores amigos, passando bem, em vez de estares a apodrecer numa cruz. Não é melhor assim? - disse-lhe um dos companheiros dando-lhe um empurrão. - Não estás bem aqui, hein? Pensa nisso Barrabás! Salvaste a tua pele, vives. Tu vives, Barrabás!

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A mulher de lábio leporino...


A mulher de lábio leporino, até agora acocorada a um canto e aparentemente distraída, após ter escutado o que diziam do outro homem, começou a portar-se de modo muito estranho. Ergueu-se e olhando Barrabás fixamente e com expressão de espanto no rosto pálido e famélico, gritou por ele com voz estranha e anasalada.

Nada havia de extraordinário; ela apenas o chamou pelo nome, mas todos a encararam admirados, sem compreender o que ela queria dizer. Os modos de Barrabás também eram estranhos, o seu olhar ia inquieto, de um lado para o outro, como quando ele queria evitar olhar directamente para alguém. O que significava tudo aquilo não se podia saber e, de mais a mais, pouco importava; o melhor era fazer de conta que não havia nada. Barrabás era bom companheiro, não havia como negá-lo, mas era assim mesmo, nunca se chegava a saber ao certo o que se passava dentro dele.

A mulher tornou-se a acocorar-se no seu canto, num pedaço de esteira estendido no chão de terra batida, mas sem tirar de Barrabás os seus olhos ardentes.

A mulher gorda trouxe comida para Barrabás, pois ocorreu-lhe que deveria estar esfomeado: certamente não se ganhava o que comer naquelas malditas e imundas cadeias. Pôs na mesa, na frente dele, pão, sal e um pedaço de carne seca de ovelha. Ele não comeu quase nada e passou os alimentos à mulher de lábio leporino, fingindo já estar satisfeito. Ela atirou-se à comida, devorando-a com a avidez de um animal. Depois precipitou-se para fora de casa e desapareceu.

Alguém se lembrou de perguntar quem era aquela mulher, mas naturalmente Barrabás nada respondeu. Este era o seu modo. Era sempre assim, não se conseguia arrancar dele qualquer coisa, quando se tratava das suas coisas pessoais.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Riram-se das suas palavras...


Riram-se das suas palavras e ela ergueu-se enfurecida, gritando que os poria a todos no olho da rua, menos a Barrabás. Os outros soltaram estrondosas gargalhadas ao ouvir aquela mulher gorda falar-lhes daquela maneira. Acalmaram-se, porém e em seguida ficaram sérios e puseram-se a conversar em voz baixa com Barrabás, contando-lhe que iam voltar à montanha nesse mesmo dia, assim que escurecesse; tinham vindo só para sacrificar um cabrito que haviam trazido; como não foi aceite, tinham-no vendido e, em seu lugar, ofereceram duas pombas imaculadas; com o restante dinheiro, estavam a divertir-se ali naquela casa, daquela mulher gorda. Queriam saber quando é que Barrabás se iria unir-se a eles, lá em cima, informando-o acerca do actual esconderijo deles. Barrabás fez sinal com a cabeça, indicando que compreendia, mas nada respondeu.

Uma das mulheres pôs-se a falar do homem que tinha sido sacrificado em lugar de Barrabás. Ela tinha-o o visto uma vez, só de passagem, e tinham-lhe assegurado que se tratava de um rabi muito versado nas escrituras e que percorria o país fazendo profecias e milagres. Isso não era nada de mal, tantos outros o faziam também; certamente havia outro motivo pelo qual o tinham sacrificado. Era um homem magro, disso ela ainda se lembrava. Outra disse que nunca o tinha visto, mas que tinha ouvido falar nas suas profecias; ele vaticinava que o templo ia desmoronar-se, que Jerusalém seria destruida por um cataclismo, e que, em seguida, as chamas consumiriam o céu e a terra; enfim, coisas absurdas. Não era pois de estranhar que o tivessem crucificado. A terceira acrescentou que ele convivia com os pobres, tendos-lhe prometido que entrariam no reino de Deus; até às prostitutas ele o prometera. Todos riram muito e acharam que não seria nada mau, se fosse verdade.

Barrabás escutava-os e parecia agora menos absorto, embora não lhe aflorasse aos lábios o mais leve sorriso. Teve um sobressalto quando a mulher gorda lhe atirou os braços em volta do pescoço, dizendo que não lhe interessava absolutamente quem tinha sido o outro, que de qualquer maneira estava morto àquela hora. Ele é que fora crucificado, e não Barrabás; tudo o mais não tinha importância.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

De uma porta que se abria como negra caverna...


De uma porta que se abria como negra caverna, partiam vozes ruidosas e, no momento em que passava, uma mulher grande e gorda saiu, toda alvoroçada, e chamou Barrabás. Estava embriagada e, ao vê-lo, agitou os enormes braços em tumultuosa alegria, querendo fazê-lo entrar imediatamente. Ele hesitou um pouco, embaraçado, mas a mulher arrastou-o para dentro. No interior da casa, foi recebido com efusivas exclamações, por dois homens e três mulheres que só pode distinguir depois de algum tempo, quando os seus olhos se acostumaram à penumbra reinante. Apressaram-se a dar-lhe um lugar na mesa, encheram-lhe um copo com vinho e puseram-se a falar, todos ao mesmo tempo. Imaginem, ter ele saído da prisão, ter sido perdoado! Que grande sorte, crucificaram outro no seu lugar! Transbordavam de vinho e de ansia em partilhar a sua sorte, tocavam-o com as mãos, para que a sorte passase para eles.

Barrabás bebeu com eles, mas não falou muito. Durante a maior parte do tempo fitava o vácuo com os seus olhos castanhos-escuros, fundos demais, que pareciam estar-se a esconder. Acharam-no um pouco estranho, mas ele às vezes era assim mesmo.

As mulheres deram-lhe mais vinho. Ele bebeu de novo e deixou que os outros falassem, sem se meter muito na conversa.

Por fim, os seus companheiros começaram a admirar a sua atitude, sem saberem o que havia com ele. Um homem de aspecto desagradável, pousou as mãos nos ombros dizendo que entendia muito bem o seu estado de espirito, após tanto tempo no cárcere, quase morto, porque ser condenado à morte é o mesmo que morrer; ser depois perdoado e solto é como ressuscitar. Ele morrera, pois, e nasceu de novo, o que não era o mesmo que que estar vivo, assim como todos os outros...

domingo, 14 de setembro de 2008

Ele mesmo teve medo.




Ele mesmo teve medo. Ficou contente quando começou a clarear e as coisas aos poucos foram tomando o aspecto normal. A claridade veio lentamente, como de manhã, quando o dia começa a expontar; espalhou-se sobre a colina e pelas oliveiras dos arredores. Os pássaros, que tinham emudecido, puseram-se de novo a chilrear. Era exactamente como a alvorada de um novo dia.

Os parentes, lá no alto, permaneciam em silêncio. Não se ouviam mais lamentos nem prantos. Todos contemplavam o homem na cruz, até mesmo os soldados. Pairava sobre a terra uma grande paz.

Agora ele podia ir-se embora, se quisesse. Tudo estava acabado. O sol brilhava de novo e as coisas estavam como de costume. As trevas duraram apenas um momento, enquanto o homem morria.

Sim, agora tinha de ir. Era preciso ir-se embora, claro. Nada mais o prendia ali. Não tinha motivo algum para ficar, pois o outro estava morto. Antes de pôr-se a caminho, ainda pode ver que o desciam da cruz. Viu então que dois homens o amortalhavam num pano de linho. O corpo era completamente branco, e os homens trabalhavam com excesso de cuidado, como se temessem magoá-lo, causar-lhe o minimo mal. Essa atitude era bem estranha, pois o homem tinha sofrido o suplicio da cruz, e tudo o mais. Aquela gente era mesmo estranha. A mãe, porém, contemplava com olhos sem lágrimas aquele que tinha sido o seu filho; rosto trigueiro parecia incapaz de exprimir pesar, revelando apenas que ela nunca poderia entender o que se passara. A mãe, sim, Barrabás compreendia melhor.

Quando o pequeno grupo passou perto dele, os homens carregando o cadaver amortalhado, as mulheres seguindo o triste cortejo, uma delas, apontando Barrabás, disse baixinho qualquer coisa à mãe. Esta parou e lançou-lhe um olhar tão cheio de desespero que ele nunca mais o poderia esquecer...

Continuaram a descer o Golgota, tomando depois outro caminho à esquerda. Mantendo distância suficiente, ele seguiu-os até um jardim das vizinhanças, onde colocaram o cadáver numa sepultura cavada na rocha. Após terem orado em frente ao sepulcro, fecharam-no com uma grande pedra e partiram.

Barrabás, por sua vez, aproximou-se e ficou ali parado por algum tempo. Não orou, pois era um malfeitor e sua prece não seria ouvida, sobretudo por não ter expiado a sua culpa. Além disso não conhecia o morto. Todavia, deteve-se um pouco em frente à sepultura. E depois, tomou o caminho de Jerusalém.

sábado, 13 de setembro de 2008

Se alguém parecia sem poder algum, era aquele homem.

Um poder! Se alguém parecia sem poder algum, era aquele homem. Impossível imaginar-se um supliciado de aspecto mais miserável. Os outros dois não causavam impressão tão lamentável nem pareciam sofrer tanto; notava-se-lhes maior reserva de energias. O do meio, nem tinha forças para erguer a cabeça, que lhe caía sobre o peito.

Mas eis que a ergueu um pouco; o peito magro e sem pelos arfava, e ele passou, arquejante, a lingua nos lábios ressequidos. Gemeu alguma coisa, querendo dizer que tinha sede. Aborrecidos com aquele condenado que custava tanto a morrer, os soldados, reunidos um pouco mais adiante, no alto da encosta, jogavam dados e não o ouviram. Um dos seus parentes, porém, desceu então até onde eles estavam e disse-lhes o que se passava. De má vontade, um dos soldados ergueu-se, molhou uma esponja numa vasilha de barro e estendeu-a, na ponta de uma vara, ao condenado. Este porém, sentindo o gosto da lama da água que lhe era oferecida, não a quis, o que provocou o riso do soldado velhaco; quando este voltou para junto dos seus camaradas e contou o caso, todos se puseram a rir.

Os parentes, ou o que quer que fossem as pessoas ali reunidas, ergueram, desesperados, os olhos para o infeliz crucificado, que respirava cada vez com mais dificuldade, sendo evidente que o fim estava próximo. Bom seria que estivesse, que aquela tortura acabasse. O mesmo pensava ele, cá em baixo, contemplando a cena. Que os sofrimentos do outro terminassem logo! Assim que tudo estivesse acabado, apressar-se-ia em sair dali e nunca mais pensaria naquilo...

Súbitamente, porém, densas sombras envolvendo toda a colina se condensaram, como que o sol tivesse perdido o brilho. A escuridão tornou-se quase completa. Ouviu-se, nas trevas, o crucificado gritar em voz alta:
- Pai, Pai, porque me abandonaste?

As palavras ecoaram lugubremente. O que ele quereria dizer com isso? E porque escurecia assim? Estava-se em pleno dia... Era incompreensivel.

A visão das três cruzes, aparecendo como vagas silhuetas lá no alto, dava calafrios. Certamente algo de terrível estava para acontecer. Os soldados ergueram-se de um salto e empunharam as lanças; quando qualquer acontecimento imprevisto sucedia, este era o primeiro impulso deles. Ficaram em torna da cruz, brandindo as lanças, e foi capaz de ouvir os murmurios que trocavam, apavorados. Estavam com medo! Já não escarneciam! Eram supertisciosos, naturalmente.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Toda aquela gente, aglomerada em volta da cruz...

Toda aquela gente, aglomerada em volta da cruz, precisaria mesmo de estar ali? A não ser que eles próprios quisessem, nada obrigava aqueles homens e mulheres a permanecer ali naqueles lugares impuros. Eram provávelmente parentes e amigos íntimos do homem, e, coisa curiosa, pareciam não temer absolutamente o sítio infecto.

Aquela mulher devia ser a sua mãe. Quase não se parecia com ele. Mas quem podia parecer-se com ele? De feições rudes e amargurada, ela tinha o aspecto de uma camponesa. De vez em quando passava as costas da mão na boca e no nariz, que escorria, por estar ela a ponto de chorar. No entanto não chorava. Não se afligia, nem olhava, como faziam os outros, para o filho crucificado. Era sua mãe, sem dúvida. Provávelmente sentia a maior compaixão, mas parecia ao mesmo tempo censurá-lo por estar ali, por ter-se portado de forma a deixar-se crucificar. De um modo ou de outro, a sua conduta deveria tê-lo levado a isso, por mais que ele fosse puro e inocente, e ela certamente não o poderia aprovar. Sendo sua mãe, tinha a certeza absoluta de que ele era inocente; fosse qual fosse a sua culpa, ela o teria, naturalmente, considerado como tal.

Quanto a ele, Barrabás, que contemplava a cena, já não tinha mãe. No pai, nem queria falar. Não tinha já parentes próximos, que soubesse pelo menos. Se o crucificado fosse ele, não haveria tantas lamentações em volta daquele homem. Aquela gente batia no peito e portava-se como quem nunca tivesse enfrentado desgraça semelhante; era um nunca acabar de pranto e suspiros.

Conhecia bem o crucificado da direita. Se este o visse, teria imaginado que viera por sua causa, para vê-lo sofrer. E absolutamente não era assim, o motivo da sua vinda era bem outro. Mas nada tinha contra o facto de o ver na cruz. Se alguém merecia a morte era esse patife, embora por motivo bem diverso do evocado na sentença.

Porquê então olhava para este e não para o do meio, crucificado em seu lugar, e que por sua causa estava ali? Porquê olhava para aquele que o obrigara a vir, que exercia sobre ele tão estranho poder?

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Todos sabem como ele foi crucificado

Todos sabem como ele foi crucificado, juntamente com dois outros, e quais as pessoas que se encontravam à sua volta. Eram Maria, sua mãe, Maria Madalena e Verónica, Simão de Cireneu, que o tinha ajudado a carregar a cruz, e José de Arimateia, que o deveria amortalhar. Um pouco afastado dos outros, porém, mais abaixo na encosta, um homem observava constantemente aquele que estava pregado na cruz, lá no alto, acompanhando a sua agonia do início até ao fim. Chamava-se Barrabás.

Era um homem robusto de cerca de trinta anos de idade, tez amarela palida, barba avermelhada e cabelos pretos. Também as suas sobrancelhas eram pretas, e os olhos, muito fundos, pareciam esconder-se nas orbitas. Uma profunda cicatriz, começando em baixo do olho, desaparecia-lhe pela barba adentro. Mas, o aspecto de um homem bem pouco significa.

Tinha seguido a multidão pelas ruas, desde o pretório, mas guardando distância, um pouco atrás dos outros, e quando, exausto, o rabi prostou-se sob o peso da cruz, detivera-se um momento para não se aproximar do local onde jazia o madeiro. Tinham então forçado Simão Cireneu a tomar o lugar do condenado e carregá-la. Quase não havia homens na multidão a não ser, naturalmente, os soldados romanos; os que seguiam o condenado à morte eram, na sua maioria, mulheres. Havia ainda um bando de rapazotes que sempre corria atrás quando passava alguém que ia ser crucificado, pois viam naquilo um espectaculo divertido. Cansaram-se rápidamente, porém, e voltaram aos seus brinquedos e brincadeiras de infância, após terem lançado um olhar ao homem com a grande cicatriz na face, que caminhava atrás dos outros.

De pé no lugar do suplício, contemplava agora aquele que estava pregado na cruz, no centro, sem poder tirar os olhos de lá. Não tivera a intenção de subir até ali, onde tudo era impuro e infecto, pois, quando se colocavam os pés naquela área de terra maldita, deixava-se nela qualquer coisa de si mesmo: podia-se voltar, forçado por um impulso maléfico, para nunca mais sair dali. Cranios e ossadas jaziam espalhados pelo chão, ao lado de cruzes tombadas, meio apodrecidas, não prestando para mais nada. Ninguém tocava neles. Porque permanecia ele ali? Não conhecia o crucificado e nada tinha que ver com ele. Que fazia no Golgota, se tinha sido libertado?

A cabeça do crucificado pendia para a frente e ele respirava com dificuldade; não lhe restava, certamente, muito tempo de vida. Não era um homem robusto. Seu corpo era magro e fraco, e os seus braços finos pareciam nunca ter servido para alguma coisa. Homem estranho, aquele... A sua barba era rala; o peito, sem pêlos, era como o de um adolescente. O homem que o observava não gostou do seu aspecto.

Mas, desde que o vira pela primeira vez, no pátio do pretório, sentia haver algo de extraordinário nele. Não sabia bem o que era, apenas o sentia. Parecia-lhe nunca ter visto antes um homem assim. Devia ser porque como acabava de sair do cárcere, os seus olhos ainda não estavam acostumados à claridade, mas vira-o, no primeiro momento, rodeado de uma brilhante auréola de luz. Pouco depois, porém, o brilho desapareceu; os seus olhos voltavam ao normal, viam agora tudo nitidamente, não apenas o homem solitário no pátio do palácio. No entanto, persistia a impressão de que havia algo muito estranho naquele homem, de que ele era diferente de todos os outros homens. Não conseguia ver nele, absolutamente, um prisioneiro, como ele o fora. Não podia compreender. Não que fosse da sua conta, mas... como podiam condenar assim? O homem era inocente, quanto a isso não havia dúvida.

Tinham-no levado para crucificá-lo, enquanto a ele, Barrabás, tiraram os ferros e declararam-no livre. Não dependia de sua vontade, isso era lá com eles... Podiam escolher quem muito bem entendessem, era direito deles, e, a sorte, decidira. Ambos estavam condenados à morte e um tinha que ser absolvido. Ele, inclusive, tinha sido o primeiro a admirar-se da escolha. Enquanto o libertavam das correntes, tinha visto o outro, já com a cruz nos ombros, desaparecer entre os soldados.

Ficara a olhar para o caminho agora vazio e um soldado deu-lhe um empurrão, gritando:
- Porque é que ainda estás aí? És livre, sai daqui para fora!

Ele então despertou, e ao ver o outro a arrastar a cruz pela rua, segui-o. Porquê? Ignorava-o. Nem sabia porque é que ficara horas a observar a crucificação e a longa agonia do condenado, pois nada tinha que ver com tudo aquilo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Quem foi Barrabás?

"...E logo pela manhã, os sumos sacerdotes, os anciãos, os escribas e todo o sinédrio resolveram atar Jesus e levá-lo a Pôncio Pilatos.
O governador romano agitou-se, mal humorado, na poltrona. Sempre naquela negregada província lhe estavam a arranjar complicações. Contemplou o homem que ali se encontrava de mãos atadas e perguntou:
- De que o acusam?
Vozes partiram de diversos pontos, cada qual procurando carregar mais na acusação:
- Estava a sublevar o povo, mandava não pagar imposto a César e dizia ser o rei dos Judeus.
Pilatos fixa o prisioneiro e interpela-o:
- És o rei dos Judeus?
- Tu o dizes! - responde o homem de olhar sereno.
As acusações repetem-se. exarcebadas e iracundas.
Ao espirito latino do governador romano repugnavam aqueles fanatismos.
- Não vejo culpa alguma neste homem.
Mas como convencer os acusadores? Contrariá-los também é perigoso. Pilatos hesita, morde os lábios, quando ouvindo dizer que o prisioneiro é da Galiléia, lhe ocorre descartar-se dele, enviando-o a Herodes, a cuja jurisdição estava afecta aquela provincia. Seria ao memso tempo, a oportunidade para uma deferência ao outro, com quem desde muito se achava de relações estremecidas.
Herodes recebe Jesus, diverte-se com ele, manda cobri-lo de branco e nesses trajes recambia-o a Pilatos numa troca habilidosa de deferências. Coisas da política! Jesus serve de pretexto feliz para a reconciliação dos dois poderosos.
Mas, de auqlquer maneira, Pilatos continua embaraçado. Não vê culpa alguma no prisioneiro e não sabe como libertá-lo. sem acarretar com as iras dos sacerdotes e do povo, que podem ser funestas ao delegado de Roma nessa Judeia negregada, onde campeiam as intrigas. E eis que lhe ocorre outra idéia. No dia da grande festa, costumava o governador soltar um preso à vontade do povo. Havia então um criminoso de nome Barrabás, acusado de vários crimes entre eles o de ter assasinado um homem num motim e respondendo, assim, perante a lei judia como assasino e perante a lei romana como rebelde. Deveria sofrer a pena máxima. Pilatos, voltando-se para o povo, propõe:
- Qual quereis que eu solte: Barrabás ou Jesus, o que se chama Cristo?
Pretendia com isso salvar Jesus, pois estava certo de que o povo não iria preferir a libertação de Barrabás, homem cruel, cuja preversidade era por todos conhecida. Mas aconteceu o que Pilatos não previra: os principes dos sacerdotes e os anciãospersuadiram o povo a que pedisse Barrabás.
Assim se deu: o povo optou por Barrabás. Visivelmente contrariado, o governador romano perguntou ainda o que devia fazer de Jesus. Todos responderam a um só tempo:
- Crucifica-o!
Pilatos insiste:
- Que mal fez ele?
Os gritos repetem-se mais vigorosos:
- Crucifica-o! Crucifica-o!"

O resto da história é conhecida de todos: Barrabás foi libertado e Jesus foi crucificado, no alto do Golgotá, entre dois ladrões.
Os evangelhos não acrescentam mais uma palavra sobre o destino de Barrabás. Nenhuma lenda, nenhuma tradição nos dá qualquer outra notícia dele. Pelo menos que eu saiba, nunca ouvi falar dele.
Que teria sido desse homem perverso, coração enegrecido pelo ódio, que já contava, certamente, com a pena máxima e que depois se tornou livre, de um momento para o outro, graças ao ódio mais denso despertado no povo por um Inocente? Como veria Barrabás esse desfecho imprevisto que o restituía à vida e à liberdade? Continuaria na senda do crime ou experimentaria aquela alma turva algum bafejo da graça? Ninguém soube ou saberá...