segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Retirando o corpo da mulher

Quando anoiteceu, Barrabás voltou, avançando cautelosamente até ao fosso do apedrejamento, e desceu por ele adentro. Não conseguia ver nada, a escuridão era completa; adiantou-se passo a passo, tacteando o caminho. No fundo extremo do fosso, encontrou o corpo estilhaçado  em parte coberto pelas pedras atiradas inutilmente, quando a mulher já estava morta. O corpo era tão pequeno e leve que mal pesava nos braços de Barrabás quando ele subiu a escarpa e desapareceu na escuridão.
Carregou o corpo durante muitas horas. De vez em quando, parava para descansar um pouco, com a morta estendida por terra, à sua frente. As nuvens tinham desaparecido e viam-se agora as estrelas; pouco depois, a lua também saiu, clareando o bastante para para se ver tudo. Sentou-se e olhou para o rosto lívido da mulher que, por estranho que fosse, não estava por demais retalhado, nem mudara muito, pois mais pálido do que fora em vida quase não podia ficar. Estava diáfano, e a fenda do lábio tinha diminuído tanto que parecia insignificante. De facto, agora não significava mais nada.


Lembrou-se do dia em que dissera à mulher que a amava. Quando a tinha possuído... Não, era melhor não pensar nisso... Mas quando lhe dissera que lhe queria bem, para que ela não se esquivasse e fizesse o que ele queria, o rosto da mulher tornara-se radiante. Não estava acostumada a ouvir palavras assim. Devia ter-se sentido feliz escutando-as, embora devesse ter compreendido que era mentira. Ou ela não compreendera? Em todo o caso, conseguira o que desejava: ela viera todos os dias trazer-lhe o que ele necessitava para viver e até ela mesma, ele a conseguira: possuíra-a mais vezes do que desejara. Afinal, contentara-se com ela por não ter tido outra mulher ao alcance da mão; a sua voz nasalada irritava-o, e ele pedira-lhe que não falasse mais do que o absolutamente necessário. Uma vez restabelecido do ferimento da perna, naturalmente teve que partir. Que mais poderia ter feito?
Contemplou a paisagem do deserto que se estendia à sua frente, desolada, sem vida, iluminada pela luz morta da lua. Sabia que, para todos os lados, o deserto se desdobrava da mesma maneira. Sentia-o sem ter de olhar em torno de si.
Amai-vos uns aos outros...
Fitou outra vez o rosto da mulher, durante um momento. Depois ergueu-a e continuou a caminhar pela montanha.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Ele veio! Ele veio! Eu vejo-o! Eu vejo-o!

O ortodoxo, impaciente, inlcinou-se, apanhou uma grande pedra pontiaguda e lançou-a ele mesmo, com todas as suas forças de ancião. A pedra atingiu a infeliz, que, cambaleando, ergueu para o alto os braços magros, num gesto desesperado. A multidão aplaudiu, com gritos selvagens, e o ortodoxo contemplou a sua obra com visível satisfação. Barrabás aproximou-se mais um pouco, ergueu ligeiramente o manto e, num movimento que denotava experiência, cravou a faca no velho. O gesto foi tão rápido que ninguém percebeu. Todos estavam completamente ocupados em lanças pedras à vítima. 
Barrabás abriu caminho até à borda do fosso e viu, lá embaixo, a mulher dar alguns passos cambaleantes, com os braços estendidos, gritando:
- Ele veio! Ele veio! Eu vejo-o! Eu vejo-o!
Depois caiu de joelhos, como se estivesse agarrando a fímbria do manto de alguém e soluçou:
- Senhor, como poderia eu dar testemunho de ti? Perdoai-me, perdoai...
Tombou agonizante sobre as pedras ensanguentadas, para não mais se erguer.
Quando tudo se acabou, os que estavam mais perto do fosso viram que um homem jazia morto entre eles, enquanto outro fugia entre os vinhedos e desaparecia nos bosques de oliveiras, em direcção ao Vale do Cédron. Vários soldados da guarda se precipitaram no seu encalço, mas não o encontraram. Dir-se-ia que a terra o tragara.


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A condenação da mulher de lábio leporino I



A mulher de lábio leporino foi condenada e conduzida ao fosso do apedrejamento, situado a sul da cidade. Toda uma multidão turbulenta seguia atrás dela e do sub-oficial da guarda do Templo que, para manter a ordem, se fazia acompanhar de seus homens, nus até à cintura, os cabelos e a barba trançados, e armados de açoites de couro de boi guarnecidos de ferro. Chegados ao local, a turba alvoroçada rodeou o sub-oficial, enquanto um dos homens fazia a mulher descer ao fundo do fosso, que estava entulhado de pedras enegrecidas pelo sangue que ali secara.
O sub-oficial ordenou silêncio. Um representante do sumo sacerdote leu a sentença e expôs o crime que a motivara, acrescentando que quem havia acusado a mulher devia atirar a primeira pedra. Conduziram o cego à borda do fosso e explicaram-lhe de que se tratava, mas ele nem quis ouvir falar daquilo.
- Porquê devo eu atirar-lhe uma pedra? Que tenho que que ver com ela? Se eu nunca a vi!
Quando finalmente, conseguiram faze-lo compreender que a lei era aquela e que ele não podia furtar-se à lei, murmurou, aborrecido, que nesse caso não havia outro remédio. Puseram-lhe uma pedra na mão e ele atirou ao acaso, na escuridão que o cercava. Tentou novamente, mas aquilo não aquilo não tinha sentido algum. Ele não tinha a menor ideia da direcção em que se encontrava o alvo, atirava a esmo, nas trevas. Barrabás que estava a seu lado, e até então não tirara os olhos daquela que sobre a qual as pedras deveriam cair, viu um homem aproximar-se para ajudar o cego. Era um velho de rosto enrugado, tinha ares de severos e trazia na fronte os mandamentos da lei, guardados num estojo de couro. Sem dúvida era um sábio ortodoxo, versado nas escrituras. Tomou o braço do cego e tentou fazer pontaria em seu lugar, para que o apedrejamento pudesse, afinal, começar. Mas o resultado foi o mesmo de antes. A pedra não atingiu o alvo. A condenada à morte continuava de pé, lá embaixo, esperando pelo que iria acontecer, com os olhos abertos e brilhantes.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Quem é que não queria ver-se curado dos seus males?


O magistrado perguntou então se o tal "salvador", como melhor o chamava, e que devia antes ser chamado o "crucificado", tinha conquistado, por meio dela, muitos adeptos lá fora.
Tinha, sim, muitos. Quem é que não queria ver-se curado dos seus males? E ele curaria a todos, apregoava ela, paralíticos, lunáticos e cegos; não haveria mais miséria neste mundo, nem na Porta do Monturo nem em parte alguma. Ultimamente, porém, o povo começava a rebelar-se lá embaixo com a demora do salvador. Ela repetia há tanto tempo que ele estava para vir, que o povo, vendo que ele nunca vinha, já estava exasperado, tendo começado a zombar dela e a lançar-lhe injúrias. Não era de admirar se ela chorasse a noite toda, não deixando mum pobre velho, coitado, dormir. Mas os leprosos continuavam firmes, acreditando nas suas histórias, o que também não é de estranhar, com o tanto que ela lhes encheu os ouvidos. Até já lhes prometera que lhes seria permitido vir à praça do Templo e entrar na casa do Senhor.


- Os leprosos!
- Sim.
- Como ousa ela prometer uma coisa tão absurda?
- Não é ela que o promete, mas o seu Senhor, tão poderoso que tudo pode prometer e modificar o que quiser. É ele que vai determinar tudo, pois é o filho de Deus,
- O filho de Deus!
- Sim.
- Ela diz que ele é o filho de Deus?
- Sim. E isso é pura blasfémia, pois todos sabem que ele foi crucificado, e mais não se precisa saber, pois os que o condenaram sabiam bem o que estavam a fazer, não é?
- Eu mesmo fui um dos juízes.
- Sim? Então sabes melhor do que eu que homem era esse!

Houve um momento de silêncio, e o velho só ouvia, na noite que o cercava, o magistrado afagando a barba. Depois a voz declarou que a mulher seria intimada a comparecer em tribunal para expôr a sua crença e justificá-la, se é que esta podia ser justificável. O velho agradeceu e afastou-se com humildes reverências, e pôs-se a esquadrinhar o muro, à procura da porta pela qual tinha entrado. O promotor chamou o criado para ajudar o cego a sair e, enquanto esperava, perguntou, para maior segurança, se o velho tinha prevenção contra a tal mulher.

- Eu, ter alguma coisa contra ela? Não, nem podia ter. Nunca tive rancor contra quem quer que seja. Por quê, se não vejo ninguém? Nunca, em toda a minha vida, vi um ser humano...

O criado conduziu-o para fora, onde, em frente à porta, ele ouviu arquejar na escuridão o jovem que o esperava. Apalpando, o velho alcançou-lhe a mão e, juntos, voltaram para a porta do Monturo.

Após uma longa ausência

O último dia em que escrevi aqui foi já há muito tempo. No entanto fico sempre surpreendido quando recebo semanalmente as estatísticas com a quantidade de visitas que continua a ter.
Decidi retomar a história/estória de Barrabás...não poderia deixa-lo por aí a vaguear.
Lamento ter feito esperar aqueles que de uma forma ou de outra regressavam a este espaço procurando "novas" de Barrabás...
Mas o passado é isso mesmo, não o podemos alterar. Vejamos o que nos reserva o futuro, que será sempre construído hoje e agora no presente, neste momento.
Não vou aderir ao Novo Acordo Ortográfico. Não sei escrever segundo esse modelo. Continuarei a escrever em Português tal como o aprendi na Escola Primária de Santo Amaro em Chaves através dos métodos e pedagogia aplicada do Prof. Bravo.
Disfrutem dos episódios que o Barrabás trás para nós assim como eu o faço.

António de Carvalho

segunda-feira, 22 de junho de 2009

As perseguições...


Quando as perseguições começaram, o velho cego, conduzido pelo jovem que sempre arquejava, procurou um dos promotores do Sinédrio e disse-lhe:
- Lá embaixo, entre nós, na porta do Monturo, uma mulher espalha heresias a respeito de um salvador que virá transformar o mundo inteiro. Tudo o que existe perecerá, dando lugar a um mundo melhor, onde reinará sómente a sua vontade. Esta mulher não deveria ser apedrejada?
O promotor, homem consciencioso, pediu ao cego que lhe expusesse mais detalhadamente a denúncia. Primeiro, de que salvador se tratava? O ancião respondeu que era o mesmo em que acreditavam aqueles que tinham sido apedrejados, e, se houvesse justiça, a mulher também o seria. Ele próprio ouviu-a dizer que o seu Senhor ia salvar todos os homens, até mesmo os leprosos. Ele iria curá-los e ficarão tão sadios quanto os outros. Mas o que aconteceria se os leprosos não tivessem mais nada que os distinguisse? Se andassem por toda a parte, sem a obrigação de usar sinetas, de maneira que não fosse possível, pelo menos aos cegos, saber onde estavam? Poderia alguém propagar impunemente tais heresias?
O magistrado afagou a barba, o que o cego, a poucos passos, podia ouvir, e depois perguntou se havia alguém capaz de acreditar naquilo que a mulher estava a anunciar. O velho respondeu que sim: entre o rebotalho humano que vivia na Porta do Monturo nunca faltava quem desse ouvidos a tais novidades. E os leprosos do fundo do vale eram, naturalmente, os que mais gostavam de ouvi-las. Além disso, a mulher fazia causa comum com aquela gente. Dizia-se que ela atravessava muitas vezes a barreira, dando-se com eles da maneira mais desavergonhada. Talvez até mantivesse relações com aqueles homens impuros; não se podia saber ao certo.
- Eu, pelo menos, não o posso saber. Em todo o caso, ela não é virgem. Dizem que teve um filho e o matou. Eu nada sei, só ouço o que se conta por aí. Meus ouvidos são perfeitos, só os meus olhos são vazios. E isto é uma grande desgraça, meu senhor. É uma desgraça ser cego, como eu.

quarta-feira, 10 de junho de 2009


Viu, numa das manchas de claridade, a mulher de lábio leporino com as mãos comprimidas contra o peito chato e o rosto pálido voltado para a luz que a envolvia. Não a via desde aquela manhã em que se tinham encontrado na frente do sepulcro; ela estava ainda mais magra e o seu mísero aspecto revelava que vivia faminta; estava vestida com andrajos e tinha as faces escaveiradas. Todos os que estavam ali reunidos olhavam para ela, conjecturando quem poderia ser aquela mulher que ninguém conhecia. Notava-se que a achavam esquisita, embora não soubessem porquê; não era só por estar maltrapilha, mas também porque todos esperavam, curiosos, pelo seu testemunho.
Porque iria ela testemunhar? De que serviria? pensava consigo Barrabás. Ela deveria compreender que ali não era o seu lugar. Embora aquilo nada fosse com ele, estava agitado. Porque se metia ela naquilo?
Tinha-se a impressão que também para ela não era lá nenhum prazer falar; fechava os olhos como se não quisesse ver as pessoas que a rodeavam e tivesse pressa em terminar. Então, porque o fazia? Certamente não tinha necessidade alguma de falar ali.
Começou a dar o seu testemunho. Com a vaz nasalada falou da fé no Senhor e Salvador, mas as suas palavras não poderiam comover ninguém, como deviam. Pelo contrário, ela era ainda mais ridícula e gaguejava mais do que de costume, naturalmente por se encontrar entre tanta gente, o que a punha nervosa. Ainda por cima, todos mostravam claramente seu desagrado, não procuravam ocultar que lhes era penoso ouvi-la; alguns viravam mesmo rosto, envergonhados. Ela terminou balbuciando qualquer coisa como: "Senhor, dei testemunho de ti, como me mandaste fazer." Depois baixou-se no chão da terra, na ânsia de ser vista o menos possível.
Todos se entreolharam, constrangidos; era como ela tivesse ridicularizado aquilo que os reunia ali. E talvez tivessem razão, talvez ela de facto o tivesse feito! Pareciam agora querer dar por finda a reunião o mais depressa possível. Um dos que a presidiam - era também um dos que tinham gritado: "Fora daqui, maldito!" - pôs-se de pé para anunciar que deviam separar-se. Acrescentou que todos sabiam o motivo de se realizar a reunião naquele lugar e não na cidade, que a próxima reunião seria noutra parte; onde, não se sabia ainda. O Senhor certamente lhes escolheria um refúgio onde estariam ao abrigo da maldade dos homens; ele era o pastor, não abandonaria o seu rebanho.
Barrabás não ouviu mais nada: saiu furtivamente, antes dos outros, e estava contente ao ver-se longe dali.
Só podia sentir aversão por tudo aquilo.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Voltando-se para a direcção de onde vinha a voz, descobriu que era o galileu de barba vermelha que ali estava, iluminado por uma réstia de luz. Exprimia-se num tom mais calmo, não excitado como os outros, e com o sotaque do seu país, que soava um pouco ingénuo ao povo de Jerusalém. No entanto, despertava mais atenção do que os outros; todos pareciam suspensos aos seus lábios, embora as suas palavras nada tivessem de extraordinário. Começou por falar durante algum tempo do seu querido mestre, depois, sempre referindo-se a ele do mesmo modo, Mestre, recordou as suas predições segundo as quais os que nele acreditavam iam sofrer perseguições por sua causa. Se assim fosse, deveriam suportá-lo o melhor que podiam, e pensar no que o próprio mestre tinha sofrido. Sem dúvida, diferentes do mestre, não eram senão pobres seres humanos, fracos e humildes, mas deviam suportar as mais duras provas sem desertar, sem renegá-lo. Era tudo o que deviam fazer. O galileu parecia estar a dizer aquilo tanto para si mesmo como para os outros. Quando ele terminou, tinha-se a impressão que a assembleia estava um pouco desapontada. Notando, talvez, que desapontara os ouvintes, anunciou que ia recitar uma oração que o mestre lhe ensinou. Quando o fez, todos pareceram mais satisfeitos, alguns, com certeza, estavam sinceramente comovidos. Em todo o recinto reinava uma espécie de êxtase comum. Quando terminou a oração, os que estavam perto dele rodearam-no como se o quisessem "felicitar", e Barrabás viu que o orador estava cercado pelos homens que tinham gritado: "Retira-te maldito!"
Do seu canto, Barrabás, vigilante, observava-os e via tudo com os seus olhos encolhidos no fundo das órbitas.
Súbitamente estremeceu...