domingo, 9 de novembro de 2008

O reino da morte...


A mulher de lábio leporino não conseguia dormir. Com o solhos erguidos para as estrelas, pensava no que iria acontecer. Não queria adormecer, estava disposta a velar a noite inteira.
Deitada num monte feito de ramos e palha numa vala fora da Porta do Monturo, ouvia à sua volta os enfermos gemendo e agitando-se no sono e o tilintar da sineta do leproso, que a dor forçava às vezes a levantar-se. O mau cheiro dos enormes amontoados de lixo preenchia todo o vale e dificultava a respiração. Ela, porém, estava tão acostumada que já não o sentia. Aliás, todos os que ali viviam não sentiam o cheiro.
Amanhã ao nascer do sol... Amanhã ao nascer do sol...
Que pensamento maravilhoso: dentro em breve os doentes seriam curados e os famintos receberiam alimentos. Mal se podia imaginá-lo. Como seria? O céu abrir-se-ia e os anjos desceriam para alimentar toda a gente, pelo menos todos os pobres? Os ricos, provávelmente, continuariam a comer nas suas próprias casas, mas todos os pobres, todos os que sofriam realmente com a fome, seriam alimentados pelos anjos... Aqui, junto à Porta do Monturo, tolhas seriam estendidas pelo campo, brancas toalhas de linho, cobertas com as mais variadas iguarias e todos se estenderiam no solo para comer. Nem era tão difícil imaginá-lo; bastava pensar que tudo seria completamente diferente do que era agora. Tudo mudaria, nada seria como se estava habituado a ver todos os dias.
Talvez ela mesmo tivesse outras vestes, quem sabe? Brancas, talvez. Ou uma túnica azul? Tudo se iria transformar, pois o filho de Deus já teria ressurgido e a alvorada de uma nova era estaria a raiar.
Amanhã... Amanhã ao nascer do sol. Era tão bom sabê-lo...
Ouvia, já mais perto, o conhecido tilintar das sinetas do leproso, que tinha o hábito de subir até ali à noite; as pessoas atingidas por esse mal viviam confinadas no fundo do vale, e não tinham o direito de transpor a sua barreira; mas na escuridão, ele atrevia-se a fazê-lo. Era como se o infeliz procurasse a proximidade dos seres humanos. Aliás, ele mesmo uma ocasião lhe disse isso mesmo. Ela viu-o avançando cautelosamente entre as pessoas adormecidas, sob a luz das estrelas.
O reino da morte... como seria, afinal? Diziam que o Mestre percorria o reino dos mortos... Qual seria o aspecto desse lugar? Não, isso ela não conseguia imaginar...

6 comentários:

Anónimo disse...

O reino dos mortos é igual ao reino das minhocas. Ou V. pensa que minhoca é cobra?
Aliás, a gente anda a carregar os genes ou a cópia dos genes desde que há vida e há-de haver quem continue. Logo, enquanto os genes conseguirem formar um corpo, ninguém morre: andamos por aqui.
mairiam

Antonio Carvalho disse...

Bom, efectivamente não penso que a minhoca seja cobra, nem penso que o reino dos mortos seja igual ao reino das minhocas. Mas a vida é somente um conjunto de genes que determinam as caracteristicas físicas dos individuos e algumas das características de comportamento ou é algo mais do que isso? Será que ao juntarmos sómente um determinado conjunto de genes já conseguimos ter vida? Para sabermos que há vida não teremos também saber algo acerca da morte? Consegue obter luz sómente com a fase positiva da electricidade? Não precisa de ambos, o pólo positivo e o pólo negativo? Muito mais que pensar que a minhoca é cobra, será que pensamos na vida? Será que pensamos na vida que levamos? Alguns de nós não estarão já mortos embora pensem que estão vivos?
Obrigado pela contribuição.

lenor disse...

Depois da morte de um indivíduo (qualquer ser vivo), a vida dele anda por aí a fazer parte de outras vidas. Nessa medida pode dizer-se que ele não morre. Por exemplo, se V. tivesse a certeza que a Eva tinha morrido e depois olhasse para mim, não morria de dúvida, mas passava-lhe a certeza.
:)
mairiam

Antonio Carvalho disse...

Há na verdade pessoas que mesmo depois de morrerem continuam a fazer parte de outras vidas. E nessa medida podemos dizer que essas nunca morreram - Ghandi, Martin Luther King, Madre Teresa, Padre Américo, etc. só para citar alguns dos mais emblemáticos exemplos do nosso tempo (séc.XX). Outras porém nunca conseguiram com que o seu nome fizesse parte da história de vida de outros. E é aí que nos perpetuamos, não sómente ao nível químico das moléculas do nosso corpo físico... é aí que podemos dizer com propriedade, para alguém marcamos a diferença!

lenor disse...

Estamos a falar de civilização ou estamos a falar de morte?

Antonio Carvalho disse...

Estamos a falar de vida e de morte, porque não há morte sem vida nem vida sem morte.