sábado, 1 de novembro de 2008

Foi em sua vez que Ele foi crucificado...


- Nem que a terra tremeu e a colina do Golgotá se abriu exactamente no local onde estava erguida a cruz?
- Isso não é verdade! É pura invenção. Como sabes que a colina se fendeu? Estiveste lá para ver?
Uma completa mudança operou-se súbitamente no outro. Olhou para Barrabás, meio titubeante e depois baixou os olhos.
- Não, não... Eu nada sei ao certo. Não o presenciei, nem o posso atestar - balbuciou ele.
Ficou algum tempo mudo e triste, suspirando dolorosamente. Afinal, pousando a mão no braço de Barrabás, continuou:
- Vês... Eu não estava com o meu Mestre quando ele sofria e agonizava. Eu tinha fugido. Abandonei-o e fugi. E antes já o tinha negado. E aí está o pior de tudo... renegá-lo! Como poderá ele perdoar-me? Que direi eu, que responderei, se ele me questionar?
Ocultou com as mãos o rosto cheio e barbado, num gesto de desespero.
- Como pude fazer semelhante coisa? Como é possível que possa ter cometido tal erro?...
Os seus límpidos olhos azuis estavam húmidos quando ele, afinal, ergueu a cabeça e fitou Barrabás:
- Perguntaste-me o que me afligia. Agora sabe-lo. Agora sabes como eu me sinto. E o meu Senhor e Mestre sabe-lo ainda melhor. Sou apenas uma pobre e miserável criatura humana... Achas que ele me perdoará?
Barrabás disse acreditar que sim. Na realidade, o que ouvia não bastava para despertar nele grande interesse, mas em todo o caso disse que sim, para mostrar simpatia e porque sentia pena daquele homem que se acusava a si mesmo de criminoso, embora não tivesse feito nada de mal. Pois haveria alguém no mundo que nunca tivesse traído, de um modo ou de outro?
O homem tomou-lhe a mão, apertando-a fortemente.
- Achas que sim? Achas que sim? - repetiu consternado.
Nesse momento, alguns homens passaram na rua. Quando viram o homem ruivo e o homem com quem falava, cuja mão retinha na sua, estremeceram e pararam, não querendo acreditar no que viam. Aproximaram-se depressa e, abordando com profundo respeito o homem mal vestido, gritaram alvoroçadamente:
- Não sabes quem é este indivíduo?
- Não - respondeu ele, o que era verdade. - Não sei. Mas é um homem compassivo e entendemo-nos muito bem.
- Não sabes então que foi em seu lugar que o Mestre foi crucificado?
O homem largou a mão de Barrabás e olhou de um lado para o outro, sem poder ocultar a sua perturbação. Os recém-chegados revelaram ainda mais claramente o que pensavam e sentiam, e ouvia-se-lhes a respiração ofegante, que denotava indignação.
Barrabás tinha-se erguido e virara-lhes as costas, para que ninguém lhe visse o rosto.
- Fora daqui, maldito! - gritaram os homens com violência.
Ele envolveu-se no seu manto e afastou-se, só, pela rua fora, sem se voltar uma única vez.

5 comentários:

Anónimo disse...

Sei que Deus perdoa as humanidades, (porque eu também perdoo, claro, que eu e Ele somos parecidos por causa daquela história de sermos feitos à imagem e semelhança um do outro), mas não sei se perdoará desumanidades. Mas antes há que julgar se são uma coisa ou outra. Enfim, a vida de Deus também não é fácil.
mairiam

Antonio Carvalho disse...

Acredito que Deus não julga no sentido antropomórfico com que nós julgamos as coisas e/ou as pessoas. Mas para mim a questão ainda está e estará na esfera humana: e nós, será que nós nos perdoamos a nós mesmos? será que alguma vez Pedro se perdoou a si mesmo? será que conseguiu superar essa incerteza que o silêncio de Deus nos oferece quando fazemos perguntas? tal como Cristo, "Pai, Pai, porque me abandonas-te?" obtendo sempre a mesma resposta?

António

Anónimo disse...

Quem tem força para se culpar a si próprio, tem também força para se perdoar. A palavra que usei, "força", pode ser substituída por outra, tal como consciência, sensatez, ou os seus inversos: inconsciência e insensatez. E outras palavras ainda: honra, honestidade, noção do bem e do mal e do certo e do errado, etc. Tudo valores muito pessoais, muito subjectivos, muito variáveis conforme a nossa sensibiliade no momento em que as coisas acontecem depois de as termos decidido e assumido.
É bom que tenhamos a noção de que fazemos é como uma jogada, que a sorte interfere no resultado tanto como nós, pelo menos, e que muita sorte teve a sorte por termos jogado, senão não tinha ninguém para brincar.
mairiam

Anónimo disse...

Deus me perdoe, mas dizer "há-de ser o que Deus quiser" é a mesma coisa que dizer: "que se foda isto tudo". A única diferença é que uns precisam de pimenta na língua para não serem malcriados, e outros não.
mairiam

Antonio Carvalho disse...

Olá Miriam:
Obrigado pelo seu contributo. Concordo nalgumas coisas que refere, tenho outra opinião em outras. Penso que a dualidade com que apresenta alguns factos não será assim tão "preto e branco", existem muitos niveis intermediários (como dizia um amigo meu, entre o preto e o branco existem pelo menos 256 diferentes tonalidades de cinzento). Não será também tão linear como parece deduzir-se das suas palavras que "quem tem força pa se culpar a si próprio também tem força para se perdoar" e acrescenta que força pode ser "consciência", "sensatez" ou "honra", "honestidade", etc. E é nesta dúvida que ainda me encontro quando procuro entender ou pelo menos tento entender o que se terá passado com Pedro ou Barrabás. Será que na realidade com a mesma proporção com que nos culpamos também nos poderemos libertar dessa culpa por nós mesmos? Depende sómente dessa tal "força"?
Concordo consigo quando as pessoas usam essa frase "seja o que Deus quiser" como que uma "fatalidade" para a qual nada podemos fazer ou mesmo não adianta nada fazer, e aqui sim, surge a ideia que sugere:"que se foda isto tudo!" Penso que essa frase nasceu de um outro contexto; na minha opinião surgiu como que uma necessidade com que os seres humanos se debateram para aceitar com humildade os acontecimentos do dia-a-dia, mas sabendo que essa aceitação traduziria a melhor opção que eles poderiam obter já que nesse contexto Deus teria uma visão mais ampla e com maior sabedoria do que os seres humanos.
Não acredito na sorte, acredito que todos nós escolhemos o nosso próprio destino, e aquilo que "hoje" temos foi o resultado das escolhas que efectuamos "ontem". E isto das escolhas dá pano para mangas....
António