segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Não são coisas fáceis de compreender!


- E porque é que se deixou crucificar, se tinha tanto poder?
- Sim, sim... Já sei.... Não são coisas fáceis de compreender. Sou um homem simples, sabes? não me é nada fácil compreender tudo isso, podes crer.
- Não estás certo de que ele vai ressuscitar?
- Estou, sim, claro que estou. O que eles dizem é verdade, estou convencido disso. O mestre voltará para se revelar em toda a sua glória e esplendor. Estou absolutamente certo disso e eles, que o afirmam, conhecem as escrituras melhor do que eu. Será um grande dia. Dizem que vai começar então uma nova era, a era da bem aventurança, em que o filho do homem regenerá o seu reino.
- O filho do homem?
- Sim. É como ele se chamava a si mesmo.
- O filho do homem?
- Era assim que ele dizia. Mas há quem acredite... não, não posso dizer...
Barrabás aproximou-se mais.
- Em que acreditam eles?
- Acreditam... que ele é filho do próprio Deus.
- O filho de Deus?
- É... mas pode não ser verdade. Quase nos causa inquietação. Eu gostaria mais de o ver voltar de novo, como ele era antes.
Barrabás não podia conter a sua agitação.
- Como podem eles dizer semelhante absurdo? - gritou exaltado. - O filho de Deus! O filho de Deus crucificado! Devias entender que tal coisa é impossível!
- Eu já disse que pode não ser verdade. Tornarei a dizê-lo, se assim o quiseres....
- Que loucos acreditam nisso? - continuou Barrabás. A cicatriz sobre o olho tornou-se mais vermelha, como sempre acontecia nas ocasiões em que se exaltava. - O filho de Deus desceria à Terra? E começaria por percorrer a sua região natal e pregar?
- Porque não? Seria bem possível. Podia começar lá como em qualquer outro lugar. É uma cidade pobre e pequena, bem sei. Mas em algum lugar era preciso começar.
O homem era tão ingénuo que Barrabás teve vontade de rir. Mas a sua agitação impedia-o. Durante todo o tempo compunha o seu manto de pelo de cabra, como se este estivesse sempre a cair-lhe dos ombros, o que não era o caso.
- E os prodígios que marcaram a sua morte? - disse o outro. - Já pensaste neles?
- Que prodígios?
- Tudo escureceu no momento da sua morte. Não o sabias?
Barrabás virou o rosto e passou as mãos nos olhos.

sábado, 18 de outubro de 2008

Ressuscitar...





- Agora que ele morreu, compreende-se muito melhor aquilo que ele costumava dizer - murmurou o outro, como se falasse consigo mesmo.
- Tu conhecia-lo bem? - perguntou Barrabás.
- Claro. Conhecia-o muito bem. Estive com ele, lá em cima, desde o início, quando estava entre nós.
- Ah, bem. Ele era lá da tua terra.
- E depois segui-o sempre, por toda a parte, para onde quer que ele fosse.
- Porquê?
- Porquê? Bem, isso agora... Por aí se está a ver que não o conheceste...
- Que queres dizer com isso?
- Ele tinha... ele tinha um poder sobre as pessoas, compreendes? Um estranho poder, um domínio... Dizia simplesmente: "Segui-me!" e tinha-se de seguí-lo. Não se podia fazer outra coisa. Se o tivesses conhecido, compreenderias melhor... Também o terias seguido.
Barrabás calou-se. Mas após um momento de silêncio:
- Sim, deve ter sido um homem extraordinário, se aquilo que dizes é verdade. No entanto, o facto de ter sido crucificado não prova que a sua força, ou o seu poder, não era, afinal, tão grande assim?
- Não... não é isso. A princípio eu também pensei assim, e é justamente o que aflige - ter acreditado em semelhante coisa, ainda que fosse só por um momento. Mas agora creio que compreendi o sentido da sua morte ignominiosa, agora que reflecti um pouco e falei com os outros, mais versados nas escrituras. Vês, por nossa causa ele, inocentemente, teve de sofrer tudo o que sofreu, até mesmo ter que descer ao reino das sombras. Mas ele voltará para dar provas do seu infinito poder. Ele ressuscitirá de entre os mortos. Estamos absolutamente certos disso.
- Ressuscitar? Ressurgir depois de morto? Que coisa mais estúpida...
- Não é uma coisa estúpida, ele irá faze-lo. E muitos acreditam que será amanhã bem cedo. Amanhã será o terceiro dia. Ele declarou, parece, que ficaria três dias no reino dos mortos. Eu nunca o ouvi dizê-lo, mas consta que assim o predisse. E amanhã, ao nascer do sol...
Barrabás encolheu os ombros.
- Não acreditas? - perguntou o outro.
- Não.
- Não, não. Nem podes acreditar... Nunca o conheces-te. Mas muitos de nós acreditam. E porque não se ele ressuscitou tantos mortos?
- Ressuscitou mortos? Não é possivel!
- É sim. Eu vi com os meus próprios olhos.
- É verdade? Tu vis-te com os teus olhos?
- Claro que é. A pura verdade. O seu poder é ilimitado. Pode fazer tudo, é só ele querer. Ah, seria bom se quisesse usar esse poder em benefício próprio! Mas nunca o fez.

domingo, 12 de outubro de 2008

Vinha de longe, muito longe...

Ah, vinha de longe, de muito longe. Os seus olhos infantis tentaram expressar o quanto era distante o lugar de inde vinha. Confiou abertamente a Barrabás o quanto desejava estar na sua casa, na sua terra natal, preferida por ele a Jerusalém ou a qualquer outro lugar do mundo. Mas não podia jamais voltar, não podia morrer e viver na sua terra, como queria, como tinha imaginado outrora. Barrabás estranhou. Porquê? Quem o impediria, se cada um tem o direito de fazer de si o que quiser?
- Oh, não!... - respondeu pensativo. - Não é assim.
Barrabás não pode deixar de perguntar porque é que ele estava ali. O outro não respondeu logo. Depois, hesitante, disse que era por causa do Mestre.
- Do Mestre? O teu Mestre?
- Sim, não ouviste falar no Mestre?
- Não.
- Naquele que foi crucificado ontem no Golgotá?
- Ah, foi? Não sabia nada disso. Porque é que foi ele crucificado?
- Porque estava determinado que assim tinha que acontecer.
- Determinado? Estava decidido que ele seria crucificado?
- Sim. Está nas escrituras. Além disso, o próprio Mestre o profetizou.
- Ele predisse-o? E está nas escrituras? Não as conheço assim tão bem para estar a par do que elas dizem.
- Nem eu. Mas sei que é assim.
Barrabás não o duvidava. Mas porque motivo tinha o tal de fatalmente ser crucificado? De que serviria? Era bem estranho.
- É o que eu também acho. Não compreendo a razão dessa absoluta necessidade de morrer. E ainda por cima, de maneira tão horrível. Mas as coisas deviam passar-se como ele tinha profetizado. Tudo teve de acontecer como estava determinado. E ele mesmo - acrescentou o homem, inclinando a grande cabeça - repetiu tantas vezes que ia sofrer e morrer por nós...
Barrabás fixou-o no olhar.
- Morrer por nós?
- Sim. Em nosso lugar. Sofrer e morrer inocentemente, por nossa causa. Devemos admitir que somos nós os culpados e não ele.
Barrabás ficou a olhar para a rua e não perguntou mais nada durante um tempo.

domingo, 5 de outubro de 2008

De que falariam eles...


Apurou o ouvido, mas os homens baixaram de novo a voz e ele não conseguiu entender mais nada.

De que falariam eles?

Pela mesma rua passava gente e era impossível ouvir mais alguma coisa. Quando porém o silêncio voltou, ouviu o suficiente para perceber que era mesmo sobre o que pensava. Era dele que estavam a falar. Do homem que...

Coisa estranha... ele mesmo, pouco antes, também pensava no homem! Passando por acaso em frente ao portão do palácio, pensou no crucificado. Perto do lugar em que o condenado tinha sucumbido ao peso da cruz, recordava-se outra vez de tudo. E agora aquela gente falava desse mesmo homem... Era estranho. O que teriam que ver com o crucificado? E porque baixaram a voz? Só aquele homem robusto de cabelos ruivos falava às vezes de modo que se ouvia dali onde estava; a sua compleição de gigante parecia não se adaptar aos cochichos.

Diriam eles qualquer coisa acerca da... da tal escuridão? De ter escurecido no momento da sua morte?

Barrabás pôs-se a ouvir atentamente, com tal exaltação que o deveriam ter notado, pois calaram-se de repente; ficaram mudos durante muito tempo, sem proferir qualquer palavra olhando-o de esguelha. Depois, murmuraram entre si qualquer coisa que ele não conseguiu entender. Mais tarde, despediram-se do homem ruivo e foram embora. Eram quatro e nenhum deles agradou a Barrabás.

Ele continuou ali sentado, a sós com o tal "rapagão" atlético. Tinha grande desejo em dirigir-lhe a palavra, mas não atinava com o que dizer para começar... O homem movia os lábios e sacudiu várias vezes a grande cabeça. Segundo o hábito da gente simples, manifestava as suas preocupações por gestos. Finalmente, Barrabás perguntou-lhe sem rodeios qual era a causa da sua aflição. Ele ergueu , com ar perturbado, os olhos azuis, muito redondos, e nada respondeu. Mas, após ter encarado o desconhecido durante alguns segundos, com expressão ingénua e crédula, perguntou se Barrabás não era de Jerusalém. Não, não era. Mas parecia que falava com o sotaque das pessoas daquela cidade. Barrabás respondeu que não vinha de muito longe, era das montanhas, vinha do leste. Viu-se claramente que isso inspirou mais confiança ao outro. Não gostava muito do povo de Jerusalém, disse-o directamente; aquela gente não merecia a mínima confiança. Uns patifes, verdadeiros bandidos, isso sim... Barrabás riu-se e concordou plenamente. E ele, de onde vinha?

quinta-feira, 2 de outubro de 2008


No dia seguinte, passeando pela cidade, Barrabás encontrou muita gente conhecida, amigos e inimigos. Pareciam na maioria admirados de o ver, e havia os que estremeciam como se tivessem deparado com um fantasma. Isso causava-lhe uma sensação desagradável. Não sabiam então que ele fora libertado? Quando é que compreenderiam que não foi ele o crucificado?

O sol estava ardente; como era estranho os olhos habituarem-se àquela forte claridade! Teria contraído algum mal na vista durante a sua longa reclusão? Em todo o caso achou melhor ficar na sombra. Ao passar pela galeria de colunas da rua que conduzia à praça do templo, resolveu sentar-se sob a arcada para descansar um pouco os olhos. Na sombra sentiu um grande alívio.

Viu, mais adiante, alguns homens sentados ao longo da parede. Conversavam em voz baixa e não pareceram apreciar muito a sua chegada, pois olhavam-o de soslaio e baixaram ainda mais a voz. Ouvia uma ou outra palavra, mas era-lhe impossível seguir o fio da conversa. Aliás, esta não o interessava, os segredos daquela gente não eram da sua conta. Um deles, homem da sua idade, tinha também barba vermelha igual à sua, que se fundia completamente nos cabelos ruivos, bastos e desgranhados. Os olhos azuis tinham qualquer coisa de singularmente ingénuo, e o rosto era largo e cheio. Tudo nele era grande e forte. Era um rapagão desempenado e, a julgar pelas suas mãos e vestes, devia ser artesão. Pouco importava a Barrabás quem fosse aquele homem ou qual o seu aspecto, mas era uma dessas pessoas que não se pode deixar de notar, embora nada houvesse nele verdadeiramente fora do comum, a não ser os olhos azuis.

O homem estava evidentemente triste e os outros pareciam partilhar da sua tristeza. Deviam estar a falar de alguém que tinha morrido, ou coisa parecida. De vez em quando todos suspiravam dolorosamente, embora fossem homens adultos. Se, de facto, assim era, lamentavam a morte de alguém, fariam melhor deixar os queixumes para as mulheres, a quaisquer carpideiras.

De repente, Barrabás percebeu que o morto do qual falavam tinha sido crucificado - e que tinha sido ainda ontem. Ontem....?