terça-feira, 11 de setembro de 2012

Quem é que não queria ver-se curado dos seus males?


O magistrado perguntou então se o tal "salvador", como melhor o chamava, e que devia antes ser chamado o "crucificado", tinha conquistado, por meio dela, muitos adeptos lá fora.
Tinha, sim, muitos. Quem é que não queria ver-se curado dos seus males? E ele curaria a todos, apregoava ela, paralíticos, lunáticos e cegos; não haveria mais miséria neste mundo, nem na Porta do Monturo nem em parte alguma. Ultimamente, porém, o povo começava a rebelar-se lá embaixo com a demora do salvador. Ela repetia há tanto tempo que ele estava para vir, que o povo, vendo que ele nunca vinha, já estava exasperado, tendo começado a zombar dela e a lançar-lhe injúrias. Não era de admirar se ela chorasse a noite toda, não deixando mum pobre velho, coitado, dormir. Mas os leprosos continuavam firmes, acreditando nas suas histórias, o que também não é de estranhar, com o tanto que ela lhes encheu os ouvidos. Até já lhes prometera que lhes seria permitido vir à praça do Templo e entrar na casa do Senhor.


- Os leprosos!
- Sim.
- Como ousa ela prometer uma coisa tão absurda?
- Não é ela que o promete, mas o seu Senhor, tão poderoso que tudo pode prometer e modificar o que quiser. É ele que vai determinar tudo, pois é o filho de Deus,
- O filho de Deus!
- Sim.
- Ela diz que ele é o filho de Deus?
- Sim. E isso é pura blasfémia, pois todos sabem que ele foi crucificado, e mais não se precisa saber, pois os que o condenaram sabiam bem o que estavam a fazer, não é?
- Eu mesmo fui um dos juízes.
- Sim? Então sabes melhor do que eu que homem era esse!

Houve um momento de silêncio, e o velho só ouvia, na noite que o cercava, o magistrado afagando a barba. Depois a voz declarou que a mulher seria intimada a comparecer em tribunal para expôr a sua crença e justificá-la, se é que esta podia ser justificável. O velho agradeceu e afastou-se com humildes reverências, e pôs-se a esquadrinhar o muro, à procura da porta pela qual tinha entrado. O promotor chamou o criado para ajudar o cego a sair e, enquanto esperava, perguntou, para maior segurança, se o velho tinha prevenção contra a tal mulher.

- Eu, ter alguma coisa contra ela? Não, nem podia ter. Nunca tive rancor contra quem quer que seja. Por quê, se não vejo ninguém? Nunca, em toda a minha vida, vi um ser humano...

O criado conduziu-o para fora, onde, em frente à porta, ele ouviu arquejar na escuridão o jovem que o esperava. Apalpando, o velho alcançou-lhe a mão e, juntos, voltaram para a porta do Monturo.

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