segunda-feira, 22 de junho de 2009

As perseguições...


Quando as perseguições começaram, o velho cego, conduzido pelo jovem que sempre arquejava, procurou um dos promotores do Sinédrio e disse-lhe:
- Lá embaixo, entre nós, na porta do Monturo, uma mulher espalha heresias a respeito de um salvador que virá transformar o mundo inteiro. Tudo o que existe perecerá, dando lugar a um mundo melhor, onde reinará sómente a sua vontade. Esta mulher não deveria ser apedrejada?
O promotor, homem consciencioso, pediu ao cego que lhe expusesse mais detalhadamente a denúncia. Primeiro, de que salvador se tratava? O ancião respondeu que era o mesmo em que acreditavam aqueles que tinham sido apedrejados, e, se houvesse justiça, a mulher também o seria. Ele próprio ouviu-a dizer que o seu Senhor ia salvar todos os homens, até mesmo os leprosos. Ele iria curá-los e ficarão tão sadios quanto os outros. Mas o que aconteceria se os leprosos não tivessem mais nada que os distinguisse? Se andassem por toda a parte, sem a obrigação de usar sinetas, de maneira que não fosse possível, pelo menos aos cegos, saber onde estavam? Poderia alguém propagar impunemente tais heresias?
O magistrado afagou a barba, o que o cego, a poucos passos, podia ouvir, e depois perguntou se havia alguém capaz de acreditar naquilo que a mulher estava a anunciar. O velho respondeu que sim: entre o rebotalho humano que vivia na Porta do Monturo nunca faltava quem desse ouvidos a tais novidades. E os leprosos do fundo do vale eram, naturalmente, os que mais gostavam de ouvi-las. Além disso, a mulher fazia causa comum com aquela gente. Dizia-se que ela atravessava muitas vezes a barreira, dando-se com eles da maneira mais desavergonhada. Talvez até mantivesse relações com aqueles homens impuros; não se podia saber ao certo.
- Eu, pelo menos, não o posso saber. Em todo o caso, ela não é virgem. Dizem que teve um filho e o matou. Eu nada sei, só ouço o que se conta por aí. Meus ouvidos são perfeitos, só os meus olhos são vazios. E isto é uma grande desgraça, meu senhor. É uma desgraça ser cego, como eu.

quarta-feira, 10 de junho de 2009


Viu, numa das manchas de claridade, a mulher de lábio leporino com as mãos comprimidas contra o peito chato e o rosto pálido voltado para a luz que a envolvia. Não a via desde aquela manhã em que se tinham encontrado na frente do sepulcro; ela estava ainda mais magra e o seu mísero aspecto revelava que vivia faminta; estava vestida com andrajos e tinha as faces escaveiradas. Todos os que estavam ali reunidos olhavam para ela, conjecturando quem poderia ser aquela mulher que ninguém conhecia. Notava-se que a achavam esquisita, embora não soubessem porquê; não era só por estar maltrapilha, mas também porque todos esperavam, curiosos, pelo seu testemunho.
Porque iria ela testemunhar? De que serviria? pensava consigo Barrabás. Ela deveria compreender que ali não era o seu lugar. Embora aquilo nada fosse com ele, estava agitado. Porque se metia ela naquilo?
Tinha-se a impressão que também para ela não era lá nenhum prazer falar; fechava os olhos como se não quisesse ver as pessoas que a rodeavam e tivesse pressa em terminar. Então, porque o fazia? Certamente não tinha necessidade alguma de falar ali.
Começou a dar o seu testemunho. Com a vaz nasalada falou da fé no Senhor e Salvador, mas as suas palavras não poderiam comover ninguém, como deviam. Pelo contrário, ela era ainda mais ridícula e gaguejava mais do que de costume, naturalmente por se encontrar entre tanta gente, o que a punha nervosa. Ainda por cima, todos mostravam claramente seu desagrado, não procuravam ocultar que lhes era penoso ouvi-la; alguns viravam mesmo rosto, envergonhados. Ela terminou balbuciando qualquer coisa como: "Senhor, dei testemunho de ti, como me mandaste fazer." Depois baixou-se no chão da terra, na ânsia de ser vista o menos possível.
Todos se entreolharam, constrangidos; era como ela tivesse ridicularizado aquilo que os reunia ali. E talvez tivessem razão, talvez ela de facto o tivesse feito! Pareciam agora querer dar por finda a reunião o mais depressa possível. Um dos que a presidiam - era também um dos que tinham gritado: "Fora daqui, maldito!" - pôs-se de pé para anunciar que deviam separar-se. Acrescentou que todos sabiam o motivo de se realizar a reunião naquele lugar e não na cidade, que a próxima reunião seria noutra parte; onde, não se sabia ainda. O Senhor certamente lhes escolheria um refúgio onde estariam ao abrigo da maldade dos homens; ele era o pastor, não abandonaria o seu rebanho.
Barrabás não ouviu mais nada: saiu furtivamente, antes dos outros, e estava contente ao ver-se longe dali.
Só podia sentir aversão por tudo aquilo.