segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A condenação da mulher de lábio leporino I



A mulher de lábio leporino foi condenada e conduzida ao fosso do apedrejamento, situado a sul da cidade. Toda uma multidão turbulenta seguia atrás dela e do sub-oficial da guarda do Templo que, para manter a ordem, se fazia acompanhar de seus homens, nus até à cintura, os cabelos e a barba trançados, e armados de açoites de couro de boi guarnecidos de ferro. Chegados ao local, a turba alvoroçada rodeou o sub-oficial, enquanto um dos homens fazia a mulher descer ao fundo do fosso, que estava entulhado de pedras enegrecidas pelo sangue que ali secara.
O sub-oficial ordenou silêncio. Um representante do sumo sacerdote leu a sentença e expôs o crime que a motivara, acrescentando que quem havia acusado a mulher devia atirar a primeira pedra. Conduziram o cego à borda do fosso e explicaram-lhe de que se tratava, mas ele nem quis ouvir falar daquilo.
- Porquê devo eu atirar-lhe uma pedra? Que tenho que que ver com ela? Se eu nunca a vi!
Quando finalmente, conseguiram faze-lo compreender que a lei era aquela e que ele não podia furtar-se à lei, murmurou, aborrecido, que nesse caso não havia outro remédio. Puseram-lhe uma pedra na mão e ele atirou ao acaso, na escuridão que o cercava. Tentou novamente, mas aquilo não aquilo não tinha sentido algum. Ele não tinha a menor ideia da direcção em que se encontrava o alvo, atirava a esmo, nas trevas. Barrabás que estava a seu lado, e até então não tirara os olhos daquela que sobre a qual as pedras deveriam cair, viu um homem aproximar-se para ajudar o cego. Era um velho de rosto enrugado, tinha ares de severos e trazia na fronte os mandamentos da lei, guardados num estojo de couro. Sem dúvida era um sábio ortodoxo, versado nas escrituras. Tomou o braço do cego e tentou fazer pontaria em seu lugar, para que o apedrejamento pudesse, afinal, começar. Mas o resultado foi o mesmo de antes. A pedra não atingiu o alvo. A condenada à morte continuava de pé, lá embaixo, esperando pelo que iria acontecer, com os olhos abertos e brilhantes.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Quem é que não queria ver-se curado dos seus males?


O magistrado perguntou então se o tal "salvador", como melhor o chamava, e que devia antes ser chamado o "crucificado", tinha conquistado, por meio dela, muitos adeptos lá fora.
Tinha, sim, muitos. Quem é que não queria ver-se curado dos seus males? E ele curaria a todos, apregoava ela, paralíticos, lunáticos e cegos; não haveria mais miséria neste mundo, nem na Porta do Monturo nem em parte alguma. Ultimamente, porém, o povo começava a rebelar-se lá embaixo com a demora do salvador. Ela repetia há tanto tempo que ele estava para vir, que o povo, vendo que ele nunca vinha, já estava exasperado, tendo começado a zombar dela e a lançar-lhe injúrias. Não era de admirar se ela chorasse a noite toda, não deixando mum pobre velho, coitado, dormir. Mas os leprosos continuavam firmes, acreditando nas suas histórias, o que também não é de estranhar, com o tanto que ela lhes encheu os ouvidos. Até já lhes prometera que lhes seria permitido vir à praça do Templo e entrar na casa do Senhor.


- Os leprosos!
- Sim.
- Como ousa ela prometer uma coisa tão absurda?
- Não é ela que o promete, mas o seu Senhor, tão poderoso que tudo pode prometer e modificar o que quiser. É ele que vai determinar tudo, pois é o filho de Deus,
- O filho de Deus!
- Sim.
- Ela diz que ele é o filho de Deus?
- Sim. E isso é pura blasfémia, pois todos sabem que ele foi crucificado, e mais não se precisa saber, pois os que o condenaram sabiam bem o que estavam a fazer, não é?
- Eu mesmo fui um dos juízes.
- Sim? Então sabes melhor do que eu que homem era esse!

Houve um momento de silêncio, e o velho só ouvia, na noite que o cercava, o magistrado afagando a barba. Depois a voz declarou que a mulher seria intimada a comparecer em tribunal para expôr a sua crença e justificá-la, se é que esta podia ser justificável. O velho agradeceu e afastou-se com humildes reverências, e pôs-se a esquadrinhar o muro, à procura da porta pela qual tinha entrado. O promotor chamou o criado para ajudar o cego a sair e, enquanto esperava, perguntou, para maior segurança, se o velho tinha prevenção contra a tal mulher.

- Eu, ter alguma coisa contra ela? Não, nem podia ter. Nunca tive rancor contra quem quer que seja. Por quê, se não vejo ninguém? Nunca, em toda a minha vida, vi um ser humano...

O criado conduziu-o para fora, onde, em frente à porta, ele ouviu arquejar na escuridão o jovem que o esperava. Apalpando, o velho alcançou-lhe a mão e, juntos, voltaram para a porta do Monturo.

Após uma longa ausência

O último dia em que escrevi aqui foi já há muito tempo. No entanto fico sempre surpreendido quando recebo semanalmente as estatísticas com a quantidade de visitas que continua a ter.
Decidi retomar a história/estória de Barrabás...não poderia deixa-lo por aí a vaguear.
Lamento ter feito esperar aqueles que de uma forma ou de outra regressavam a este espaço procurando "novas" de Barrabás...
Mas o passado é isso mesmo, não o podemos alterar. Vejamos o que nos reserva o futuro, que será sempre construído hoje e agora no presente, neste momento.
Não vou aderir ao Novo Acordo Ortográfico. Não sei escrever segundo esse modelo. Continuarei a escrever em Português tal como o aprendi na Escola Primária de Santo Amaro em Chaves através dos métodos e pedagogia aplicada do Prof. Bravo.
Disfrutem dos episódios que o Barrabás trás para nós assim como eu o faço.

António de Carvalho